domingo, 4 de agosto de 2024

Ana Paula Vescovi - Destravando o crescimento da construção habitacional, FSP

 A escassez de recursos constrange o crescimento do setor imobiliário, algo que surge com recorrência como preocupação dos agentes públicos e de mercado.

financiamento habitacional no Brasil cresceu cinco vezes após o Plano Real. Saiu de cerca de 2% do PIB para algo próximo a 10% do PIB, no período recente. Além do crescimento sustentado após a estabilização monetária, concorreram para esse avanço reformas microeconômicas e o aumento da segurança jurídica para investidores no setor. A alienação fiduciária trouxe a garantia real do imóvel no financiamento; e o patrimônio de afetação segregou riscos entre os empreendimentos e incorporadores.

Fotografia feita de cima mostra o topo de prédios em construção e casas de telhados alaranjados em São Paulo. A imagem é ampla e compreende três fileiras de casas em ruas horizontais e uma fileira de casas na rua vertical, no lado esquerdo da imagem.
Prédios residenciais em obras na avenida Santo Amaro no bairro Vila Nova Conceição, em São Paulo - Danilo Verpa - 14.abr.2024/Folhapress

O espaço para crescimento é imenso. Nos EUA e no Reino Unido, o financiamento imobiliário responde por mais de 50% do PIB. No Chile, são 30%! Esse é um veículo fundamental de geração de valor, de cobertura do déficit habitacional e de diversificação de ativos reais provedores de rendimentos em complementação às rendas do mercado de trabalho e da aposentadoria.

Em grande medida, o financiamento imobiliário no Brasil vem de fontes direcionadas e remuneradas abaixo do mercado, como a poupança e o FGTS. Mas isso está mudando. Os CRIs (Certificados de Recebíveis Imobiliários), as LCIs (Letras de Crédito Imobiliário), os FIIs (Fundos de Investimento Imobiliários) e as LIGs (Letras Imobiliárias Garantidas) vêm atraindo investidores para novos produtos, com remunerações referenciadas a mercado. No total do financiamento imobiliário, as fontes sub-remuneradas respondem por 60% (poupança, 34%, e FGTS, 26%), ao passo que as fontes de mercado vêm crescendo e já respondem por 40% do total, segundo a Abecip (Associação Brasileiras das Entidades de Crédito Imobiliário e Poupança).

Aqui, há um permanente desequilíbrio entre o uso de fontes sub-remuneradas e direcionadas (poupança e FGTS) e a oferta de fontes de financiamento. Quando as taxas de juros se encontram elevadas, aumenta a demanda sobre fontes mais baratas e faltam recursos. Quando as taxas estão baixas, aumenta a demanda sobre as fontes de mercado, dificultando o cumprimento dos direcionamentos obrigatórios para as instituições financeiras.

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Com a redução do apetite dos investidores pela poupança e a atual aceleração do uso do FGTS, descasado da variação das disponibilidades, as fontes sub-remuneradas tendem a se tornar ainda mais escassas.

As saídas passam, primeiramente, pelo ajuste das contas públicas e por inflação controlada, que assegure juros de equilíbrio mais baixos na economia (dos atuais 5% para 3% ou menos), e pelo arejamento e evolução do mercado de capitais. O potencial de crescimento do crédito imobiliário e, por consequência, do setor habitacional depende do grau de ambição dessa agenda.

Com fontes mais escassas, o uso das fontes mais baratas (poupança e FGTS) deveria ser prioritariamente destinado aos mutuários, não aos construtores e incorporadores, que podem ir a mercado. Além disso, a ausência de taxas de pré-pagamento na regulação bancária, algo praticado nos demais países, retira a previsibilidade dos contratos para os agentes financeiros e a formação de taxas de juros, inibindo a oferta e subtraindo sua estabilidade.

Ademais, o governo elevou, recentemente, o prazo mínimo para vencimento das LCIs de 3 para 12 meses, quase paralisando as emissões. Reduzir esses prazos, mantendo o rigor em relação aos lastros, seria medida para promover a substituição saudável das fontes direcionadas.

Surge ainda a proposta de reduzir a taxa de compulsório da poupança para liberar cerca de R$ 40 bilhões por ano de liquidez ao sistema, o que, além de ser insuficiente para mover a agulha (o estoque é superior a R$ 1 trilhão), é uma sinalização ruim para a política monetária e para o controle da inflação.

Outras medidas possuem potencial de trazer ainda maior instabilidade sistêmica. A ideia de securitizar a carteira de empréstimos habitacionais com recursos da Emgea traz à memória os riscos da seleção adversa de mutuários e de ofuscar métricas de riscos, espalhando-os pelo sistema. Assim ocorreu com as securitizações nos EUA e com a crise dos empréstimos subprime, em 2007.

No Brasil, o custo médio de carregamento da carteira habitacional (cerca de 9%) é inferior às taxas de juros referenciadas pelo Tesouro (cerca de 12%). Ou seja, para que a operação fosse viável, a securitizadora teria que aceitar remuneração negativa para um risco relevante. Outra medida, a troca de indexador de TR para IPCA, teria que legar para a agência "securitizadora" pública e, em última instância, para o Tesouro o risco do descasamento entre os indexadores (em cerca de 4%). São componentes de fragilização do ajuste fiscal.

Por fim, sempre importante observar os espaços existentes para reduzir custos de transação e assimetrias informacionais (ampla disponibilização dos cadastros para os agentes), a partir de usos mais intensivos da tecnologia.

Mudar estruturalmente o financiamento habitacional, viabilizando novos saltos para o setor e para a economia, passa assim pela adaptação às mudanças que já estão ocorrendo no comportamento dos investidores, nas ferramentas de apoio a uma regulação prudente e justa e em novos produtos financeiros à disposição do investidor.

Reinserção social de presos se firma como negócio e vira arma contra facções, FSP

  EDIÇÃO IMPRESSA

BRASÍLIA

Eduardo Fialho trocou a carreira na OAS por uma empresa de construção civil. Passou a erguer presídios e percebeu aí uma oportunidade de negócio: não só gerenciar o local em parceira com o Estado como preparar os presidiários para a ressocialização para evitar que sejam cooptados por facções como o PCC e o Comando Vermelho.

O engenheiro e empresário Eduardo Fialho
O engenheiro e empresário Eduardo Fialho - Divulgação

Por que surgiu esse mercado?
A Lei de Execução Penal obriga o Estado a garantir ao preso seus direitos básicos, como saúde e educação. A maioria dos estados optou por contratar diversos prestadores. Ocorre que, com tantos fornecedores, fica difícil garantir que tudo funcione ao mesmo tempo no presídio.

Isso dá dinheiro?
O Estado regula o ganho, nossa margem de lucro sobre os valores pagos nas licitações é de 5% a 7%. Quem for mais eficiente consegue ter um lucro maior. Hoje são 644 mil presos no país e, na cogestão, são cerca de 20 mil. Isso custa cerca de R$ 80 milhões por mês.

Quantas empresas operam nesse segmento?
Há cerca de sete principais, que se reúnem em um sindicato presidida por mim, o Sindisempre. Defendo que esse setor se especialize e, como a Socialize, passe a desempenhar um trabalho de ressocialização e reinserção social. Um preso recuperado, habilitado para o mercado de trabalho, gera arrecadação ao estado quando sai. Cada preso custa, em média, R$ 4 mi, por mês. Se a cada mil presos, 50 não voltarem para a prisão por reincidência, será lucro.

Como fazer isso se as prisões hoje estão dominadas por facções? A cogestão é um caminho, mas ela não funciona em presídios superlotados. Em Itabuna (BA), temos 800 presos e 68% deles estão estudando. No ano passado, 22 já faziam faculdade e, neste ano, 74 passaram no Enem. A lei prevê o abatimento da pena para quem estuda ou faz trabalhos no presídio. Transformamos essa possibilidade legal em incentivo. Muitos concluíram seus cursos porque conseguiram reduzir a pena, convertida para o semiaberto, para que pudessem assistir às aulas presenciais.

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Como driblar o estigma social para que um ex-detento seja contratado?
É uma questão social. Os nossos ex-presos estão preparados, muitos têm nível superior e, mesmo assim, não conseguem trabalho. Por isso, vamos criar uma cooperativa de trabalhadores e firmar parcerias com empresas que entendam a essência do projeto. Esse cara, que chegou até esse ponto conosco, viu uma oportunidade de não ser cooptado pelas facções criminosas.


Raio-X | Eduardo Fialho

Engenheiro civil, fez carreira na OAS e decidiu mudar de rumo. Em 2005, adquiriu o controle da Socializa, empresa fundada em 1991 e que hoje é responsável por cinco penitenciárias na Bahia. Ajudou a fundar e preside o Sindisempre, associação das empresas de cogestão. Gosta de pescar.

Hélio Schwartsman - País dos privilégios, FSP

 Sou fã de Bruno Carazza desde os tempos em que ele mantinha um blog no qual tentava introduzir medidas objetivas para analisar questões de direito. É com satisfação, portanto, que o vejo agora envolvido no ambicioso projeto de escrever uma trilogia que atualiza "Os Donos do Poder", o clássico de Raymundo Faoro, que mostrou como alguns estamentos sociais conseguem sequestrar o poder do Estado brasileiro para beneficiá-los. O título da obra de Bruno é "O País dos Privilégios", da qual acaba de sair o primeiro volume.

A ilustração de Annette Schwartsman, publicada na Folha de São Paulo no dia 4 de agosto de 2024, mostra uma repartição pública com várias estações de trabalho vazias, porém cheias de documentos, e as respectivas cadeiras com paletós pendurados; a única exceção é um homem, ao fundo, na última mesa, que está em sua mesa, usando o computador; outros funcionários, em primeiro plano, um grupo de cinco homens vestindo camisas, calças sociais e gravatas, estão em pé, conversando, enquanto tomam cafezinho; na parede um relógio marca 11:00.
Annette Schwartsman

Neste tomo inicial, Bruno se debruça sobre o funcionalismo público. Esse livro teria potencial de ser um dos mais aborrecidos do mundo. O que Bruno faz essencialmente é comparar tabelas com rendimentos de servidores e outros dados que não despertam entusiasmo. Mas ele consegue transformar isso numa leitura interessante. Eu exageraria se afirmasse que a obra se lê como um romance de Agatha Christie, mas o texto é agradável e prende a atenção. Até desperta algumas emoções no leitor, quando descreve as formas criativas pelas quais certos estamentos extraem benefícios da sociedade.

O número de funcionários públicos no Brasil não é exagerado –12%, bem menos que o registrado em algumas economias avançadas--, mas empenhamos em suas remunerações a formidável fatia de 13% o PIB, padrão só verificado nos países nórdicos. A distribuição é, como tudo no Brasil, desigual. Enquanto funcionários municipais ganham em média menos que trabalhadores da iniciativa privada em funções semelhantes, grupos de elite do funcionalismo federal ganham bem mais, além de gozar de outros privilégios. Estamos falando de juízes, membros do Ministério Público, fiscais de renda etc.

O livro não é uma diatribe contra servidores públicos. Bruno é muito cuidadoso ao lembrar que eles desempenham um papel importantíssimo na administração, que justifica alguns (mas não todos) os privilégios.