quarta-feira, 3 de abril de 2024

Elio Gaspari - A tragédia de Sergio Moro, FSP

 Está em curso o julgamento do processo que poderá terminar na cassação do mandato do senador Sergio Moro. Se ele for condenado, a corrupção ganha porque o símbolo da maior operação de combate à corrupção da história nacional foi apanhado em malfeitorias eleitorais. Se ele for absolvido, a corrupção também ganha, porque, tendo cometido ilegalidades, saiu inteiro.

Essa situação parece absurda, mas segue uma lógica demonstrada na segunda metade do século passado pelo economista sueco Gunnar Myrdal. Leis complexas e ambíguas são produzidas pelo Estado e por burocratas para preservar a prática da corrupção.

Passados dez anos, no Supremo Tribunal Federal descostura-se o manto de moralidade da Operação Lava Jato. Confissões são desconsideradas e multas são congeladas. Em poucas palavras, no cumprimento de leis complexas e ambíguas, o jogo virou.

O senador Sergio Moro (União Brasil-PR) após deixar seu gabinete no Senado Federal, em Brasília
O senador Sergio Moro (União Brasil-PR) após deixar seu gabinete no Senado Federal, em Brasília - Pedro Ladeira - 1º.abr.24/Folhapress

Há duas semanas completaram-se dez anos da explosão do caso da compra, pela Petrobras, da refinaria de Pasadena, nos Estados Unidos. Neste ano da graça de 2024, a empresa suíça Trafigura acaba de pagar US$ 126 milhões para a Justiça americana por conta do seu esquema multinacional de capilés. A repórter Julia Affonso revelou que a Trafigura molhou a mão de um diretor da Petrobras com US$ 1,5 milhão em operações de compra e venda de óleo.

Como as leis são complexas e ambíguas, em 2022 o Superior Tribunal de Justiça suspendeu o processo. Apesar das confissões de executivos, a defesa dos investigados argumentou "práticas espúrias de parte dos procuradores da República, integrantes da força-tarefa Lava Jato, e da autoridade judiciária, reconhecidas pelo Supremo Tribunal Federal como contaminadoras de sua atuação e das provas por eles produzidas".

Bingo. Era o ocaso da Lava Jato, alvorada para os réus. Passaram-se dois anos e as roubalheiras com a Trafigura explodiram nos Estados Unidos. Lá, o Departamento de Justiça afirmou que "por mais de uma década, a Trafigura subornou autoridades brasileiras para obter negócios ilegalmente e obter mais de US$ 61 milhões em lucros". No Brasil, o caso dorme em berço esplêndido.

O juiz Sergio Moro divulgou a delação premiada do petista Antonio Palocci às vésperas da eleição de 2018 e foi para o Ministério da Justiça de Jair Bolsonaro. O magistrado, que surgiu em 2004 defendendo uma faxina no sistema político nacional, viu-se acusado pelo Podemos de ter torrado R$ 45 mil do fundo partidário em roupas, inclusive uma bermuda.

Moro fez uma carreira literalmente meteórica e, como sucede com os meteoros, produziu brilho, barulho e buraco. O metabolismo nacional levou dez anos para digerir a República de Curitiba, que ousou encarcerar os barões da corrupção organizada. Cassou o mandato do ex-procurador e deputado Deltan Dallagnol e poderá cassar Sergio Moro.

Moro e os procuradores pagam pelo que fizeram de errado. Até aí, é o jogo jogado, mas criou-se uma situação na qual a culpa de um alivia os crimes dos outros. Resultado: os larápios de 2014 viram vítimas dos réus de 2024.

Os réus de 2014 confessaram seus crimes e aceitaram pagar multas proporcionais aos prejuízos que causaram à Viúva para abastecer seus cofres. Uma coisa era uma coisa e outra coisa, outra coisa.

Militares não são poder moderador no Brasil, editorial FSP

 Chega às raias do esdrúxulo, para não dizer ridículo, que o Supremo Tribunal Federal precise gastar horas a fio para formar maioria em torno do óbvio: as Forças Armadas não têm a atribuição de funcionar como um poder moderador no Brasil e a Constituição não permite intervenção militar sobre Executivo, Legislativo ou Judiciário.

Na atual conjuntura de polarização, entretanto, chega-se a julgar até o evidente, pois grassam em alguns setores da sociedade noções tortuosas acerca do Estado de Direito, alimentadas por fanatismo, quando não por rematada má-fé.

Em uma dessas interpretações tresloucadas, tomou-se o artigo 142 da nossa Carta Magna para convertê-lo —ou melhor, subvertê-lo— em amparo legal ao apetite golpista do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) e de seus seguidores.

Redigido ainda em meio aos escombros da ditadura militar (1964-1985), o artigo em questão estabelece que as Forças Armadas são instituições organizadas sob a autoridade suprema do presidente da República e destinadas "à defesa da pátria, à garantia dos Poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem".

Conceda-se que o texto poderia ter saído mais claro; daí não decorre, porém, que sejam defensáveis leituras abstrusas de seu sentido, como se tal conteúdo pairasse acima das demais normas. No que consiste em mais uma obviedade, é preciso interpretá-lo à luz do espírito democrático que perpassa toda a Constituição de 1988.

Eis o que têm feito os ministros do Supremo que já se manifestaram sobre o tema, em ação direta de inconstitucionalidade ajuizada pelo PDT em 2020. O partido, diante da escalada do golpismo bolsonarista, pretendeu pôr uma pedra definitiva no assunto.

Coube ao ministro Luiz Fux, relator do processo, assumir a dianteira. Em seu voto, afirmou, sem ambiguidades, que as teses da intervenção militar e da atuação moderadora das Forças Armadas estão "em completo descompasso com o desenho institucional estabelecido pela Constituição".

Seu colega Flávio Dino, de modo mais enfático, definiu como "delirante construção teórica" a ideia de que as Forças Armadas poderiam exercer o poder moderador.

Em linha parecida, Gilmar Mendes sustentou que "a hermenêutica da baioneta não cabe na Constituição" e pontificou que rejeitar a distorção do artigo 142 é imperativo, dada a "tentativa abjeta e infame de invasão das sedes dos Três Poderes em 8 de janeiro de 2023".

A eles já se somaram outros ministros, com o que se formou maioria no STF a favor do que nunca esteve em dúvida: o Brasil é uma democracia, na qual os Poderes são apenas três, todos eles civis.

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Caso Moro não muda farra de pré-campanhas bancadas com verba pública, Bruno Boghossian, FSP

 Em novembro de 2021, o Podemos alugou um auditório, contratou uma produtora, mandou fazer cartazes e comprou o lanche para a cerimônia de filiação de Sergio Moro. O ex-juiz discursou como pré-candidato a presidente e aproveitou para voltar aos holofotes, meses depois de pedir demissão do governo Bolsonaro.

Um calhamaço de notas fiscais, uma calculadora e um pouco de bom senso jurídico seriam suficientes para esclarecer se aquelas e outras despesas, ainda na pré-campanha, deram uma vantagem indevida a Moro na eleição de 2022. A turma envolvida na ação que corre no TRE do Paraná parece mais afeita a certos contorcionismos.

O PL, que pede a cassação do mandato de Moro, incluiu na conta de abuso de poder econômico milhões de reais em serviços que nem chegaram a ser prestados por um marqueteiro. Já o time do senador alegou que gastos anteriores não deram grandes benefícios ao ex-juiz —como se a pré-campanha ocorresse num universo paralelo.

O relator do caso, Luciano Falavinha, ficou mais perto dos advogados de defesa. Depois de abrir o voto rejeitando um julgamento sobre "acertos e erros" da Lava Jato, o juiz descartou parte das despesas efetuadas com a movimentação política de Moro e afirmou que ele não tirou proveito da pré-candidatura a presidente para se eleger senador.

Pode ser que o tribunal concorde. Se isso ocorrer, Moro será salvo (ao menos até a chegada do processo ao TSE) por uma leitura bondosa de regras elaboradas pela metade para o período de pré-campanha. Graças a isso, há juízes que veem relevância em despesas com mídia ou pesquisas antecipadas e outros, como é o caso de Falavinha, que tratam os gastos como algo genérico.

Moro só teria um julgamento justo se a lei fosse clara e houvesse margem menor para interpretações divergentes ou artimanhas políticas. Seja qual for o desfecho, o caso só deve reforçar a farra das pré-campanhas abastecidas de forma generosa com dinheiro público.