Chega às raias do esdrúxulo, para não dizer ridículo, que o Supremo Tribunal Federal precise gastar horas a fio para formar maioria em torno do óbvio: as Forças Armadas não têm a atribuição de funcionar como um poder moderador no Brasil e a Constituição não permite intervenção militar sobre Executivo, Legislativo ou Judiciário.
Na atual conjuntura de polarização, entretanto, chega-se a julgar até o evidente, pois grassam em alguns setores da sociedade noções tortuosas acerca do Estado de Direito, alimentadas por fanatismo, quando não por rematada má-fé.
Em uma dessas interpretações tresloucadas, tomou-se o artigo 142 da nossa Carta Magna para convertê-lo —ou melhor, subvertê-lo— em amparo legal ao apetite golpista do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) e de seus seguidores.
Redigido ainda em meio aos escombros da ditadura militar (1964-1985), o artigo em questão estabelece que as Forças Armadas são instituições organizadas sob a autoridade suprema do presidente da República e destinadas "à defesa da pátria, à garantia dos Poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem".
Conceda-se que o texto poderia ter saído mais claro; daí não decorre, porém, que sejam defensáveis leituras abstrusas de seu sentido, como se tal conteúdo pairasse acima das demais normas. No que consiste em mais uma obviedade, é preciso interpretá-lo à luz do espírito democrático que perpassa toda a Constituição de 1988.
Eis o que têm feito os ministros do Supremo que já se manifestaram sobre o tema, em ação direta de inconstitucionalidade ajuizada pelo PDT em 2020. O partido, diante da escalada do golpismo bolsonarista, pretendeu pôr uma pedra definitiva no assunto.
Coube ao ministro Luiz Fux, relator do processo, assumir a dianteira. Em seu voto, afirmou, sem ambiguidades, que as teses da intervenção militar e da atuação moderadora das Forças Armadas estão "em completo descompasso com o desenho institucional estabelecido pela Constituição".
Seu colega Flávio Dino, de modo mais enfático, definiu como "delirante construção teórica" a ideia de que as Forças Armadas poderiam exercer o poder moderador.
Em linha parecida, Gilmar Mendes sustentou que "a hermenêutica da baioneta não cabe na Constituição" e pontificou que rejeitar a distorção do artigo 142 é imperativo, dada a "tentativa abjeta e infame de invasão das sedes dos Três Poderes em 8 de janeiro de 2023".
A eles já se somaram outros ministros, com o que se formou maioria no STF a favor do que nunca esteve em dúvida: o Brasil é uma democracia, na qual os Poderes são apenas três, todos eles civis.
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