segunda-feira, 27 de dezembro de 2021

Bolsonaro fez da política um tumor que consumiu brasileiros em 2021, João Pereira Coutinho, FSP

 A pandemia ainda não produziu obras de arte dignas desse nome. Mas existe um filme, por acaso ruim, que captura o espírito do presente: "Tempo", de M. Night Shyamalan.

Conto rápido: uma família chega a um resort turístico. Pai, mãe e crianças, juntamente com outros hóspedes, são levados a uma praia "paradisíaca", para usar o adjetivo cafona das agências de viagens.

Mas o paraíso é enganador: incapazes de sair da praia quando as tragédias começam a acontecer, os turistas percebem que envelhecem rapidamente. Passam algumas horas e já passou uma década. O que significa que os velhos morrem depressa; o pessoal de meia idade fica rapidamente velho (e doente); as crianças viram adolescentes em questão de minutos.

Foi o que senti com essa pandemia. Corrijo. Foi o que senti nos reencontros natalinos desse ano: a família e os amigos que já não se viam há dois anos envelheceram duas décadas. As crianças cresceram demasiado depressa. Os adultos apareceram com rugas, cabelos grisalhos, cabelo nenhum. E barrigas salientes.

Essa sensação é agravada pelo fato de nos termos despedido ontem, ou seja, algures em março de 2020. Mas então passou um dia, porque os dias foram sempre iguais, repetitivos, indistintos, e estamos às portas de 2022.

A sensação não é pessoal. É geral. Quando reapareci aos olhos deles, havia também um esgar de surpresa, que só por decoro não se transformou em grito de horror. Percebo a sensação. Eles despediram-se de uma pessoa e eis que outra tomou o meu lugar.

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Moral da história?

Esse vírus não levou apenas vidas, economias, projetos. Levou também o que existe de mais precioso em qualquer existência: tempo. O tempo das memórias, das conversas e das experiências que jamais teremos de volta.

É um roubo imperdoável. E isso para ficarmos em Portugal, onde vivo. Tremo só de pensar o que vou encontrar no Brasil daqui a uns meses, quando regressar ao país depois de um hiato de três anos. Terão passado três décadas?

Vou falando com amigos brasileiros. Mas pressinto que, no caso deles, houve duas pandemias, não apenas uma: a do vírus e a do governo. Isso me permitiu cartografar, só pelas suas vozes, um envelhecimento brutal, duas vezes mais rápido que o meu.

Ilustração representando engrenagens e peças mecânicas amontoadas
Ilustração publicada em 27 de dezembro de 2021 - Angelo Abu

No início, quando Bolsonaro ainda era uma criança, elas conservavam a vitalidade dos resistentes. Mas então os meses passaram, os anos também, e comecei a notar que aqueles timbres foram perdendo qualquer coisa. Frescor, talvez. Como se a política brasileira tivesse virado um tumor gigantesco, que consome todas as energias dos pacientes.

Não falo apenas de energia física, mas psíquica: obsessivamente, qualquer conversa resvalava sempre para Bolsonaro, seus filhos e seus seguidores.

E quando eu tentava mudar de assunto, porque no esquema geral do mundo o governo Bolsonaro não passa de um detalhe (privilégios de quem vive longe...), sentia que eles estavam reféns do personagem, como se as sombras da caverna fossem a única realidade possível ou permitida.

É nesses momentos que se entende melhor a sábia observação de que os povos mais felizes são aqueles que desconhecem o nome dos seus governantes.

Agora que um novo ano caminha para nós, esse é o meu desejo para 2022: que o personagem vá embora. Não só pela saúde democrática do Brasil. Minhas razões são mais prosaicas, mais egoístas. Eu só quero os meus amigos de volta.

*

P.S. – Enquanto o ano não acaba, e fazendo jus à tradição, deixo ficar meus filmes, livros e discos de 2021. Colheita modesta, admito, mas meu tempo não foi perdido com os filmes de Rebecca Hall ("Identidade"), Paolo Sorrentino ("A Mão de Deus", uma grande surpresa) e Alexander Nanau (o documentário "Colectiv", obrigatório para qualquer jornalista ou candidato à profissão).

Nos livros, a prosa magistral de Julian Barnes na recriação da Belle Époque (em "O Homem do Casaco Vermelho"), o novo ensaio de Paul Franco ("Rousseau, Nietzsche and the Image of the Human") e os ensaios de Andrew Sullivan, que trazem o conservadorismo para o século 21 ("Out on a Limb: Selected Writing, 1989 – 2021"; experimentem, reacionários, e aprendam alguma coisa).

Musicalmente falando, oscilei entre o Carnegie Hall (com "Mingus at Carnegie Hall") e o Hudson Theatre (com uma nova versão de "Sunday in the Park with George").

Nas séries, "Succession" (que deveria terminar com essa temporada) e uma obra-prima antiga de David Simon a que só agora assisti ("Show Me a Hero").


‘Prisão em 2ª instância é, sim, constitucional’, diz Carlos Velloso, ex-presidente do STF, OESP

Gabriel Manzano

27 de dezembro de 2021 | 00h30

 

Carlos Velloso. Foto: Dida Sampaio

Por três décadas, entre o final dos anos 70, quando assumiu no STJ, e 2006, quando deixou a presidência do STF, o filósofo e jurista Carlos Velloso viveu no dia a dia muitos pequenos e grandes momentos do Judiciário – e como professor debateu todos os seus problemas. Neste final de 2021, um ano nada tranquilo para o Supremo, sua definição a respeito dele continua a mesma: ele é “um guardião maior da Constituição”, e esta continua sendo a base para se resolver as grandes pendências – o que inclui a guerrinha diária entre os poderes.

Uma dessas polêmicas, a questão de prisão de um réu já após sentença em segunda instância, é um exemplo. “Isso é perfeitamente constitucional”. avisa o jurista. Como também “não é despropositada” a ideia de se limitar o tempo de atuação de um ministro na mais alta corte do País. Só que, ao invés dos 10 anos já sugeridos, ele afirma: “Um mandato de 15 anos seria adequado”. A seguir, trechos da entrevista.

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Tornou-se comum, no País, a disputa entre Judiciário, Legislativo e Executivo pelo direito de dar a palavra final sobre quase tudo. Como isso poderia ser resolvido?
Com o cumprimento da lei. O Supremo Tribunal Federal é o guardião maior da Constituição. Assim está estabelecido no seu art.102, segundo o qual compete ao Supremo “precipuamente, a guarda da Constituição”. E como guardião maior, cabe-lhe intervir, sempre, anulando atos que a contrariem.

Os outros poderes não aceitam isso tão facilmente.
Pode parecer que o Supremo estaria disputando com o Legislativo ou do Executivo, quando isto não ocorre. Ocorre, apenas, que ele está fazendo cumprir a Constituição. As pessoas do ramo entendem isto. É bom assinalar, também, que o Supremo não decide sem que lhe requeiram que decida – papel de partidos políticos, associações de classe, confederações e federações sindicais, parlamentares. É assim nos países civilizados.

Uma das cruzadas contra o Judiciário é para limitar a carreira de seus ministros a dez anos. É uma boa ideia? Ou só uma jogada dos outros poderes pra fazer novas indicações?
Penso que essa limitação não é despropositada. Os tribunais constitucionais europeus, nos quais nos inspiramos, já o fazem. Acontece que a Constituição brasileira adota dois sistemas de constitucionalidade: o controle concentrado, em abstrato, o controle difuso, segundo o modelo americano. Neste controle difuso, a questão constitucional é decidida numa ação entre partes, em que a experiência do juiz é importante. Então, um mandato de dez anos me parece pouco. Um mandato de quinze anos seria adequado. E mantida a aposentadoria compulsória em 75 anos, como já é agora.

E como vê o fim da prisão em segunda instância? Voltar ao trânsito em julgado como critério para prender é correto?
A prisão, isto é, o início da execução da sentença penal, após a decisão em segunda instância, é perfeitamente constitucional. A Constituição não é interpretada em tiras, como dizia o ministro Eros Grau. Em livro em homenagem ao ex-ministro do TSE Roberto Rosas, Uma Vida Dedicada ao Direito, publiquei a minha posição, buscando apoio na jurisprudência dos povos civilizados, em que a sentença pode partir do juiz de primeiro grau.

O sr. conhece o Supremo Tribunal Federal há pelo menos 30 anos. Ao vê-lo agora tão cobrado e contestado por outros Poderes e por profissionais do direito, como descreveria esse panorama?
É que os brasileiros descobriram as ações do controle concentrado. O Supremo, então, está sendo muito acionado, muito procurado. Isto é, as ações do controle concentrado têm aumentado – ações diretas de constitucionalidade, por ação ou por omissão, ações de descumprimento de preceito constitucional, a ação declaratória de constitucionalidade, os mandados de injunção, as reclamações. O brasileiro é judiciarista, o que é bom, é civilizado. Ademais, a Constituição legitimou, isto é, autorizou um leque de autoridades e instituições de representação de classe a requerer as ações.

Brasil perde um de seus melhores amigos com a morte de Tom Lovejoy, FSP

 Carlos Eduardo Lins da Silva

Professor do Insper, foi correspondente da Folha em Washington

SÃO PAULO

Com a morte de Tom Lovejoy, o Brasil perde um de seus melhores amigos. Ao longo de 57 anos, grande parte de sua vida foi dedicada à pesquisa e à defesa da Amazônia brasileira, da qual se tornou proeminente porta-voz mundial.

Durante décadas, levou ao seu posto de pesquisa na floresta personalidades dos EUA e de outros países para excursões que incluíam a passagem da noite de ano novo. Em Washington, ser convidado para uma delas era considerado uma honra entre celebridades.

Retrato de Thomas Lovejoy
Ambientalista Thomas Lovejoy morreu aos 80 anos em Washington - Paula Giolito/Folhapress (05.ago.2011)

Para muitas delas, como Al Gore, na época senador, depois vice-presidente americano e prêmio Nobel da Paz, a experiência foi como uma epifania. Grandes jornalistas, atores de cinema, políticos, autoridades e diplomatas refizeram suas ideias sobre o meio ambiente após essas visitas promovidas por Lovejoy.

Em sua casa do século 18 em Virgínia, perto de Washington, realizava reuniões com políticos, ambientalistas, acadêmicos brasileiros e americanos para discutir os rumos do Brasil, em especial no campo da ecologia.

Respeitado como um dos mais importantes cientistas na área da biologia (em 2012 recebeu o prêmio Blue Planet, considerado equivalente ao Nobel na área do meio ambiente), cunhou o conceito de biodiversidade e foi um dos primeiros a defender a ideia do uso de créditos de carbono para proteger florestas.

Tão relevante (ou mais) que seu trabalho acadêmico, foi o que realizou como divulgador da causa conservacionista. Durante 14 anos nas décadas de 1970 e 1980, ajudou a transformar o World Wildlife Fund numa das mais importantes entidades de seu tipo no mundo.

Foi conselheiro para temas ambientais dos presidentes Ronald Reagan, George H. Bush e Bill Clinton, e assessorou informalmente os presidentes Barack Obama e Joe Biden. Foi um dos criadores da série de programas "Nature" na televisão pública americana, colaborava com a revista National Geographic.

Trabalhou no Banco Mundial, no Banco Interamericano de Desenvolvimento, na Fundação das Nações Unidas, sempre para ajudar essas instituições a tomar decisões sobre assuntos ambientais.

Era tão presente nas publicações acadêmicas como nas de interesse geral. No Brasil, o veículo em que mais teve artigos editados foi esta Folha (o último, intitulado "Reflorestar a Amazônia", em coautoria com André Guimarães, diretor do Ipam, saiu em 16 de setembro último).

Seu mais recente artigo científico de relevo também foi escrito em parceria com um brasileiro, Carlos Nobre, do Inpa, na revista "Science Advances", em fevereiro de 2018, sob o título "Amazon Tipping Point", e dele consta o alerta de que o desmatamento na Amazônia está próximo de atingir o ponto de não retorno se medidas drásticas e urgentes não forem tomadas para detê-lo.

Em agosto deste ano, Lovejoy informou a amigos que havia sido diagnosticado com câncer no pâncreas, mas que segundo seu oncologista era de um tipo que podia ser tratado com hormônios e que ele ainda tinha "muitos anos pela frente".

"Estou bem, com 90% de minha energia normal e ocupado como sempre", ele dizia no fim da mensagem. De fato, produziu muito nos meses seguintes. Terminou um livro ainda não editado ("Ever Green: Saving Big Forests to Save the Planet"), com John Reid, economista da ONG Nia Tero, que ajuda grupos indígenas a proteger e explorar de modo sustentável seus territórios".

Em 2 de novembro, o "New York Times" publicou com destaque artigo de Lovejoy e Reid com o título "The Road to Climate Recovery Goes Through the Wild Woods".

Lovejoy morreu no dia de Natal, aos 80 anos, em Washington.