O ministro Gilmar Mendes aparentemente alterou a cena de um julgamento de 2013 para justificar, na semana passada, a anulação de uma sentença de Sergio Moro no caso Banestado.
Moro condenara o doleiro Paulo Roberto Krug a onze anos de prisão por lavagem de dinheiro e depósitos no exterior, entre 1996 e 2002, em contas de laranjas. No último dia 24 de agosto, a 2ª Turma do Supremo Tribunal Federal anulou a condenação de Krug.
Gilmar Mendes e Ricardo Lewandowski entenderam que houve “violação à imparcialidade do julgador” [Moro]. Foram vencidos os ministros Edson Fachin (relator) e Cármen Lúcia. Os advogados de Krug sustentaram que Moro colheu depoimento da delação premiada do doleiro Alberto Youssef e juntou documentos ao processo depois das alegações finais da defesa.
Em 2013, a 2ª Turma rejeitou habeas corpus impetrado em 2008 por Rubens Catenacci, outro doleiro do Banestado, condenado por Moro a nove anos de prisão por remeter ilegalmente meio bilhão de reais ao exterior. Catenacci também alegara parcialidade do juiz da Lava Jato, acusando-o de monitoramento de advogados. Teori Zavascki reconheceu que o monitoramento de advogados não foi para obter provas, mas “para tornar exequível uma ordem de prisão”.
Em voto-vista, Gilmar Mendes acompanhou o relator Eros Grau (aposentado), que rejeitara as alegações de nulidade. Mas disse ter ficado “impressionado” com os vários incidentes, e “repetidos decretos de prisão”, mesmo admitindo que “todos os decretos de prisão estão fundamentados”. [grifo nosso]
Conforme registrou o STF, “embora tenha reconhecido que as decisões do juiz no curso do processo tenham sido bem fundamentadas , o ministro Gilmar considerou que o magistrado teve condutas ‘censuráveis e até mesmo desastradas’, mas afirmou que não se pode confundir excessos com parcialidade”. [grifos nossos]
Ou seja, em seu voto, Gilmar não vislumbrou “causa de impedimento ou suspeição”.
“Em todos os decretos de prisão, houve fundamentação das razões de convencimento da necessidade da medida. Ainda que com ela não se concorde, o sistema processual funcionou em sua plenitude, permitindo a ampla defesa, tanto é que todas as decisões foram desafiadas por writ, uns exitosos; outros não.” [grifo nosso]
Ainda Gilmar Mendes:
“Evidentemente não estou a defender que a motivação do ato judicial, aliás pressuposto de sua validade, autorize qualquer absurdo, abuso ou autoritarismo. Não. Apenas constato que, no caso concreto, as decisões questionadas encontram-se fundamentadas e, portanto, passíveis de controle pela superior instância, como efetivamente ocorreu.” [grifo nosso]
Eis como o ministro justificou, na semana passada, os motivos de seu novo entendimento para anular a sentença contra Krug:
“Naquele momento afirmei: ‘não é possível confundir excessos com parcialidade’. Contudo, agora, depois de o tempo demonstrar cada vez mais traços da realidade que antes não se evidenciava, os excessos eram marcantes na atuação do magistrado de primeiro grau exatamente em razão de suas condutas tendencialmente parciais.”
Em 2008, quando Catenacci impetrou o HC, não estava em vigor a Lei 12.850/13 –que define o crime de formação de organização criminosa e prevê como será o acordo de colaboração.
Antes que se alegue que Gilmar Mendes quis dar efeitos retroativos à lei, o ministro procurou justificar esse fato em seu voto para anular a sentença contra Krug:
“Ainda que o acordo aqui analisado e a sua homologação judicial tenham ocorrido em momento anterior à promulgação da Lei 12.850/13, me parece claro que a necessidade de imparcialidade judicial está consolidada na Constituição e em tratados internacionais de direitos humanos há muito mais tempo. Isso não pode ser ignorado! E a proteção da imparcialidade deve ser dar por meios efetivos para tanto.”
O ministro não especificou qual dispositivo da lei –que ainda não vigorava– foi descumprido pelo juiz.
De volta para o futuro
Em comentário na newsletter FolhaJus, afirmei nesta terça-feira (1º):
“A tentativa de desestabilizar Moro não funcionou no início da Lava Jato. Agora, o STF pode estar criando ‘precedentes’ para anular outras sentenças do ex-juiz e inviabilizar seus projetos políticos. Inaceitável.”
Várias análises sugerem que o caso Banestado foi ressuscitado para permitir a anulação de outras sentenças de Moro. A decisão abriria precedente que pode afetar julgamentos da Lava Jato, incluindo condenações de Lula.
“Ele [Gilmar Mendes] mudou a decisão do Banestado para anular a do Lula”, diz a procuradora regional da República aposentada Ana Lúcia Amaral, de São Paulo.
Em junho de 2019, quando foram divulgadas pelo The Intercept Brasil as conversas de Moro com Deltan Dallagnol, coordenador da força-tarefa da Lava Jato, ela disse, em entrevista à Folha: “Houve sempre uma narrativa de que o ex-presidente Lula foi condenado sem provas. Como não deu para apagar as provas, ‘vamos arranjar uma nulidade'”.
“Os tribunais superiores são pródigos em admitir as nulidades, a salvação de quem é criminoso”, disse a procuradora.
Ainda Ana Lúcia: “Quando a Lava Jato parecia apenas pegar o PT, o ministro [Gilmar Mendes] tinha uma atitude diferente.”
Sobre a anulação da condenação de Paulo Roberto Krug, Ana Lúcia observa que os processos eram todos de Moro. “A conexão é para isto mesmo: o juiz que tem o conhecimento do conjunto tem mais chances de fazer a análise e decisão mais coerente”.
“Por que o juiz interroga primeiro o réu? Porque a prova é para o convencimento dele. Por que o juiz defere cautelares como prisão preventiva? Porque já vê elementos de responsabilidade penal. O juiz não se convence da culpabilidade no momento da redação da sentença”, diz a procuradora.
Ao opinar pelo não provimento do recurso de Krug, o subprocurador-geral da República Edson Oliveira de Almeida sustentou, em 2017, o seguinte:
“Caso o juiz, conhecedor de tais documentos que poderiam sanar dúvidas sobre fatos constantes do procedimento criminal e colaborar para a busca da verdade, permanecesse inerte, aí sim poder-se-ia falar em quebra da imparcialidade, pois conhecedor de que sua inércia poderia beneficiar a parte contrária àquela a quem competia o ônus probatório”.
Valores em jogo
É, no mínimo, curioso que o juiz Sergio Moro, acusado de ter cometido tantas impropriedades em julgamentos e condenações de empresários e políticos influentes, seja atropelado –agora– pela condenação de dois doleiros por crimes cometidos há mais de vinte anos.
Os doleiros foram denunciados pelo Ministério Público Federal em 2003.
A defesa juntou aos autos parecer de Geraldo Prado, professor de Direito Processual Penal da UFRJ, mestre e Doutor em Direito. O parecerista diz que “a política processual não está parada no tempo”. “Daí que é razoável exigir dos tribunais que atuem por princípios no exame dos casos de alegada violação da imparcialidade dos juízes”, opina.
“Neste momento da história constitucional brasileira, não se trata, pois, de assegurar somente ‘as regras do jogo’ e sim garantir ‘os valores em jogo’”, afirmou.
Mesmo diante de um julgamento tão distante, o professor sustenta “a hipótese de comprometimento psicológico do magistrado com a tese condenatória, internalizada por ocasião da audiência administrativa de delação premiada”.
Convém relembrar fatos relevantes no julgamento de maio de 2013 –dez anos depois das denúncias, e que serviu de parâmetro para a anulação de outra sentença em agosto de 2020.
Nos dois casos, o ministro Gilmar Mendes trouxe voto-vista. Em tese, essa condição permite ao julgador definir o melhor momento para divergir.
Krug foi beneficiado por empate, com a ausência justificada de Celso de Mello, em licença médica. Mas o resultado poderia ter sido mais desfavorável a Moro se o decano tivesse votado.
Em 2013, a acusação de parcialidade do juiz da Lava Jato não prevaleceu, mas Celso de Mello votou, solitário e vencido, pela anulação do processo. Ele entendeu que a sucessão de atos praticados por Moro não foi compatível com o princípio constitucional do devido processo legal.
Para o ministro, a conduta do juiz gerou sua inabilitação para atuar na causa, atraindo a nulidade dos atos por ele praticados. Além de monitorar o deslocamento dos advogados do doleiro, a defesa alegou que o juiz retardou o cumprimento de uma ordem do Tribunal Regional Federal da 4ª Região (TRF-4) porque estava redigindo uma nova ordem de prisão.
O decano afirmou que a conduta do magistrado fugiu “à ortodoxia dos meios que o ordenamento positivo coloca a seu dispor”, transformando-o em investigador.
O Ministério Público Federal opinou pela rejeição do HC e afirmou que as alegações da defesa do doleiro revelam apenas “sua insatisfação com a condução rigorosa do processo pelo magistrado, o que não se confunde com a propalada arbitrariedade do juiz”.
Aparentemente, incomodava mais os ministros a alegação de que Moro usurpara atribuições do STF, do que a eventual quebra da imparcialidade.
Constou da ementa:
“São inaceitáveis os comportamentos em que se vislumbra resistência ou inconformismo do magistrado, quando contrariado por decisão de instância superior. Atua com inequívoco desserviço e desrespeito ao sistema jurisdicional e ao Estado de Direito o juiz que se irroga de autoridade ímpar, absolutista, acima da própria Justiça, conduzindo o processo ao seu livre arbítrio, bradando sua independência funcional”.
No ano seguinte, Zavascki mandou soltar 12 presos da Lava Jato. Achou que Moro tinha feito, ele mesmo, o desmembramento do processo, remetendo apenas parte ao Supremo. Moro escreveu uma resposta sobre sua decisão, e relatou ao ministro o risco de fuga dos doleiros Alberto Yousseff e Nelma Kodama.
Teori manteve a prisão de outros acusados, deixando solto apenas Paulo Roberto Costa. A Lava Jato não morreu naquele dia. Zavascki morreria em 2017.
Nada de novo
Os fatos sugerem que, em 2013, era preciso enquadrar o juiz desobediente.
A Turma acompanhou a recomendação de Gilmar Mendes, que inovou. Determinou que o Conselho Nacional de Justiça e o Tribunal Regional Federal da 4ª Região apurassem se Moro havia cometido falta disciplinar.
No dia 1º de dezembro de 2014, o desembargador Celso Kipper, então vice-corregedor regional da Justiça Federal da 4ª Região, arquivou o procedimento preliminar.
Kipper registrou que os mesmos fatos já haviam sido examinados em 2007 pela corregedoria do TRF-4, que determinara o arquivamento, decisão mantida pelo CNJ.
“Os fatos são rigorosamente os mesmos”, afirmou Kipper em sua decisão. O corregedor considerou “absolutamente relevante” registrar que nem mesmo o julgamento do habeas corpus junto ao STF, “com toda a série de considerações vertida nos debates, trouxe qualquer elemento novo”.
“Quer-me parecer que o Pretório Excelso partiu do pressuposto de que tais acontecimentos não haviam sido analisados no âmbito desta Corregedoria Regional, o que não corresponde à realidade”, afirmou.
Kipper deferiu pedido formulado pelo editor deste Blog e determinou o fornecimento de cópia da decisão de arquivamento, até então sob sigilo.
“Não há, na decisão em questão, qualquer referência que possa, ainda que em tese, atentar contra a intimidade do juiz federal Sergio Fernando Moro. Ao revés: é o segredo, o mistério a respeito dos motivos do arquivamento que poderão dar azo, eventualmente, a toda sorte de ilações, podendo prejudicar, aí sim, a imagem do magistrado”, registrou o corregedor.
Consultado pelo Blog, na época, Moro não quis se manifestar.
Em nota distribuída no último dia 24 de agosto, o juiz afirmou:
“Em toda minha trajetória como Juiz Federal, sempre agi com imparcialidade, equilíbrio, discrição e ética, como pressupõe a atuação de qualquer magistrado. No caso específico, apenas utilizei o poder de instrução probatória complementar previsto nos artigos 156, II, e 404 do Código de Processo Penal, mandando juntar aos autos documentos necessários ao julgamento da causa.”
“Foi uma atuação regular, reconhecida e confirmada pelo TRF-4 e pelo Superior Tribunal de Justiça e agora recebeu um julgamento dividido no STF que favoreceu o condenado”.