sábado, 1 de junho de 2019

Um salto para a memória de João, Katia Rubio, FSP

Morto há 20 anos, João do Pulo foi um dos gênios do salto triplo brasileiro

Muito da memória que se preserva depende da narrativa criada sobre o fato ou pessoa que protagonizou um feito. Alguns são peritos em fazer da própria história um épico cinematográfico. Outros, no entanto, embora dignos de menção em todos os anais, vão pouco a pouco caindo no esquecimento.
A vitória costuma ser, no esporte, um bom motivo para manter viva a memória de seu protagonista, mas, em alguns casos, nem medalha nem recorde é capaz dessa façanha. E assim, nomes e conquistas vão perdendo valor e as novas gerações crescem achando que a história começa com a entrada em cena dos atuais campeões.
Esta semana que passou deveria ter sido celebrada a memória de um dos grandes gênios do salto triplo brasileiro. Ele que ganhou a marca de sua modalidade no próprio nome e manteve um dos recordes mais longevos da história não foi celebrado, nem lembrado, nem reconhecido. Apenas esquecido.
O atleta João Carlos de Oliveira, o João do Pulo, salta 16,54 m em prova de salto triplo pelas eliminatórias para os Jogos Pan-Americanos, no Ibirapuera, em São Paulo (SP), em março de 1979 - Folhapress
João do Pulo nasceu João Carlos de Oliveira. Embora tuberculoso na infância, tornou-se atleta. Era alto, esguio e nem o voleibol, nem o basquetebol foram capazes de tirá-lo das pistas com as quais se identificou na adolescência quando começou a praticar o salto em distância e o salto triplo.
Pelas mãos do técnico Pedro de Toledo, o Pedrão, ele chegou aos Jogos Pan-Americanos do México, em 1975, onde cravou 17,89 m. Foi aí então que ganhou o apelido que o acompanharia mesmo depois da transição de carreira. Seu salto tornou-se um pulo para a história.
João seguia proximamente os feitos de outros dois triplistas brasileiros, dignos de monumentos que ainda não foram erigidos: o bicampeão olímpico Adhemar Ferreira da Silva e o medalhista de prata e bronze, Nelson Prudêncio. Nos Jogos Olímpicos de Montréal ganhou a medalha de bronze.
Tudo parecia escrito para a vitória nos Jogos Olímpicos de Moscou em 1980, edição olímpica marcada pelo boicote liderado pelos Estados Unidos. Há inúmeros casos relatados de falta de decoro, de lisura e de fair play por parte dos anfitriões daqueles Jogos.
Assim como as ginastas romenas, João ameaçava a supremacia soviética. Seus saltos precisos e poderosos podiam desbancar os donos da casa, para quem a festa estava preparada. E assim, 9 dos seus 12 saltos foram anulados, sendo que, em sua última tentativa, passou dos 18 metros, o que lhe valeria um novo recorde mundial.
Em uma época em que apenas o veredito dos juízes valia para a afirmação de uma marca, todos os esforços feitos durante a competição foram em vão. Mesmo diante de tamanha desfaçatez João conseguiu a medalha de bronze, metal que rendeu a ele e ao técnico Pedrão um gosto amargo de injustiça.
O atleta João Carlos de Oliveira, o João do Pulo, durante desfile em carnaval, posa para foto com fantasia - Jorge Araújo 01.mar.84/Folhapress
Depois desse episódio, ainda foi possível ser campeão sul-americano na Bolívia, com a marca de 17,05 metros. Mas, a vida parecia mesmo querer fazer João provar sua resiliência. Às vésperas do Natal de 1982, foi a Campinas para uma formatura e no retorno a São Paulo sofreu um acidente automobilístico que lhe custou a perna direita. Foram muitos dias entre a vida e a morte.
João do Pulo tornou-se então político. Foi eleito deputado estadual e depois reeleito. Mas, a política não lhe proporcionou os mesmos saltos que o esporte. O ostracismo após o acidente e o insucesso em outros empreendimentos o aproximou de hábitos de vida que o distanciavam ainda mais do campeão que havia sido, querido e respeitado. Só e desencantado com a vida, faleceu em 29 de maio de 1999, vítima de uma cirrose hepática.
Que sua memória seja preservada e reconhecida pelas novas gerações. João foi um gigante roubado.
Katia Rubio
Professora da USP, jornalista e psicóloga, é autora de "Atletas Olímpicos Brasileiros"

Quando os olhos condenam, Luís Francisco Carvalho Filho, FSP

A polícia é "capaz de tudo". A afirmação é chocante —afinal, em tese, forças policiais existem para proteger— e parece exagerada. Mas não é.
A frase é fio condutor da série que estreou mundialmente ontem sobre cinco adolescentes condenados em Nova York por um crime que não cometeram: "Olhos que condenam" ("When They See Us"), direção de Ava DuVernay para a Netflix.
Neste célebre caso, o erro judiciário se explica pelo racismo e pela histeria coletiva. Quatro rapazes negros e um latino são suspeitos porque estão no Central Park fazendo bagunça em uma noite de abril de 1989. São obrigados a confessar.
A série tem o componente político da atualidade. Os personagens estão vivos e os Estados Unidos, na antessala da eleição presidencial.
Em meio à indignação provocada pelo ataque brutal contra a mulher branca e formada em Yale, surge o empresário arrivista Donald Trump investindo US$ 85 mil em matéria paga clamando pelo retorno da pena de morte e da "nossa polícia".
Mesmo depois da declaração da inocência dos réus, Trump reapareceria em 2016, não para lamentar o erro clamoroso, mas para legitimar a condenação, mesmo que o DNA do verdadeiro estuprador tenha sido localizado na cena do crime.
A polícia só não é "capaz de tudo" porque há instrumentos de proteção institucional. Sim, sempre haverá policiais corruptos e assassinos, mas o poder desmedido tornaria o aparelho repressivo implacavelmente arbitrário e absolutamente impune.
Suspeita tem limites, regras. Como agentes de segurança correm risco de vida no enfrentamento do crime violento, eles defendem a erosão do sistema de pesos e contrapesos. 
Nos EUA, policiais alcançam imunidade ainda que o componente racial do abuso seja escandaloso. No Brasil, Bolsonaro empresta o peso da Presidência da República para proteção de policiais que matam por matar.
A Justiça não libertaria militares (exercendo poder de polícia) acusados de desferir 80 tiros contra o veículo de um magistrado, mas os liberta se os 80 tiros são desferidos contra o de uma pessoa qualquer.
A recente reportagem do programa "Fantástico" sobre reconhecimento de suspeitos no Brasil é sólida e didática.
O repórter lembra que cérebro não é câmara fotográfica e mostra como é passível de falha o olhar da testemunha. Indução voluntária ou involuntária da autoridade responsável pela investigação, diferentes graus de atenção, memória e rigor semântico, o desejo insondável de identificar alguém para mitigar os efeitos da agressão, tudo é capaz de embaralhar certezas e incertezas no processo criminal.
Em vez de aprimorar protocolos, para reduzir a incidência do erro (a pretexto de lutar contra a impunidade e de eliminar formalidades inúteis), os tribunais brasileiros têm visão complacente da atividade policial. Toleram desvios e violência desde que praticados contra pobres ou pretos.
O Código de Processo Penal estabelece que, antes do reconhecimento, a testemunha deverá descrever a pessoa a ser reconhecida. O segundo passo é colocar a pessoa a ser reconhecida ao lado de outras que com ela tiverem semelhança.
O roteiro é simples, mas não é obedecido por policiais e juízes. Segundo o entendimento jurisprudencial, o texto da lei é "recomendação", não "exigência". Como dá trabalho cumprir a lei, ainda que policiais e juízes sejam remunerados para isso, o reconhecimento é feito "nas coxas" e os equívocos se multiplicam.
Luís Francisco Carvalho Filho
Advogado criminal, presidiu a Comissão Especial de Mortos e Desaparecidos Políticos (2001-2004).