terça-feira, 13 de fevereiro de 2018

O nosso samba, minha gente, é isso aí - CARLOS ANDREAZZA, O Globo


O GLOBO - 13/02

Dinheiro público no carnaval das escolas de samba é dinheiro público na mão do jogo do bicho, das milícias e do tráfico de drogas e armas


Marcelo Crivella trancou o caixa da prefeitura à histórica subvenção de escolas de samba. O discurso foi de austeridade: em tempos de crise, as prioridades seriam outras. Colheu aplausos dos (loucos) que não gostam de carnaval e dos que, não sem razão, alegam que dinheiro público para cultura deveria ter destinação restrita, certamente vedada a produções — o desfile das escolas de samba entre elas — capazes de se financiar na iniciativa privada. E apanhou dos que defendem a indústria do carnaval e contabilizam os dividendos turísticos do evento para a cidade, dos que pensam que cabe ao Estado bancar a atividade cultural e dos que, com razão, identificaram, no fundamento da decisão do prefeito, uma imposição de natureza político-religiosa: o desprezo tirânico de lideranças evangélicas por manifestações derivadas de religiões de matriz africana.

Esse é o quadro do que se estabeleceu como debate público a respeito da relação econômica entre poder público e escolas de samba; mas é, sobretudo, um dos casos em que elemento presente nenhum na tela será mais importante do que aquele que falta e cuja ausência me espanta, o argumento essencial de por que nem sequer um centavo de dinheiro público deveria ser posto em escolas de samba: o fato de que, controladas por esquemas criminosos, monumentais tanques para lavagem de dinheiro imundo, entidades cujas contas não suportariam dez minutos de auditoria, é inaceitável que o Estado contribua com isso enquanto assim for. Ponto final. Esta é a chave arrumadora do debate — mas que, por covardia ou comodidade, está fora do debate: dinheiro público no carnaval das escolas de samba é dinheiro público na mão do jogo do bicho, das milícias e do tráfico de drogas e armas.

A situação é de anomia e em muito extrapola o financiamento estrito dos desfiles. Por exemplo: a prefeitura construiu a Cidade do Samba, conjunto de galpões em que alegorias e fantasias são preparadas, e a entregou — como se propriedade privada — à Liga Independente das Escolas de Samba. Da mesma forma ocorre na organização estrutural do carnaval, monopólio da Liesa e território inacessível ao poder público, desde a comercialização de ingressos até a escolha de jurados e a apuração dos resultados. Duas perguntas — as mais urgentes tanto quanto nunca feitas: quando o Estado retomará os aparelhos públicos usados pelas agremiações para deflagrar o processo licitatório por meio do qual a gestão do espetáculo na Sapucaí passará à iniciativa privada? Quando o julgamento dos desfiles terá a óbvia independência decorrente de não ser dirigido pela elite da parte interessada?

Comandadas pelo complexo de atividades criminosas que fez o Rio de Janeiro refém e sustentadas pela sucessão de governantes que nos entregaram ao sequestrador, escolas de samba são peculiares instituições do Estado. Todas. Ou quase. E as que não são sonham ser. Nem sempre foi assim. Mas assim é há muito. São, acima de tudo, a perfeita representação da sociedade, tipicamente brasileira, entre Estado e crime organizado; centros de criação cultural e de vida comunitária (algumas poucas, cada vez menos) tanto quanto núcleos (quase todas) para exercício autoritário de poder; agremiações que (com modestas exceções) não sobreviveriam sem os braços trançados de bandidos e governantes; e que se acostumaram a exigir dinheiro do Estado tanto quanto se recusam a funcionar sob a lei do Estado, com o aval do Estado.

Aí está, descrita, a engenharia corrompida da farra. Um universo de podridão inescapável — isso se formos capazes de nos despir da paixão, no caso daqueles que, como eu, amam, cada vez mais à distância, uma escola de samba, o glorioso Império Serrano. Não posso, a propósito, deixar de registrar o constrangimento em ver jornalistas, que passam o ano todo se capitalizando com o discurso contra a desigualdade e em defesa da alforria, batendo cabeça para papai bicheiro quando se acerca o carnaval. A cobertura jornalística das escolas de samba há muito está, com respeitáveis exceções, contaminada por relações promíscuas.

Chego, pois, a meu ponto — desdobrado dessa cegueira voluntária. Se as escolas de samba, quase todas, não existiriam sem o casamento entre crime e Estado, tornam-se vergonhosos — farsantes mesmo — alguns dos desfiles apresentados em 2018, aqueles cujos enredos tiveram natureza crítica, carregados de protestos sociais e políticos, e exaltados como vigorosos acontecimentos no campo da liberdade. Depois de curiosa mais de década em que essa valentia seletiva se amorteceu (escolas de samba são de esquerda pelo mesmo mecanismo de adesão-pressão sob o qual artistas têm de ser?), houve agremiação — uma dessas com dono não exatamente democrata — apresentando-se contra a escravidão moderna, e até mesmo um vampirão houve, referência a Michel Temer, chefe de um governo a cujo Ministério da Cultura, porém, as escolas correram em busca de dinheiro.

Gosto, especialmente, do caso da grande Beija-Flor, propriedade de um dos barões do bicho, cujo crescimento bebeu gostoso na fonte — sede expressa não apenas em desfiles de exaltação aos generais — do regime militar, e que não faz muito desfilou em homenagem a uma ditadura africana, mas que, neste ano, resolveu, com um lindíssimo samba, protestar contra a intolerância, contra o opressor modelo político e social vigente no Brasil. Não foi uma autocrítica. Chora, cavaco.

Carlos Andreazza é editor de livros

O consumo e a normalização, OESP


A preservação da renda das famílias, combinada com a redução do desemprego e com a melhora de perspectiva, facilitou a retomada do consumo

O Estado de S.Paulo
13 Fevereiro 2018 | 03h00
As famílias voltaram às compras e o aumento das vendas ao consumidor deixa ainda mais clara a recuperação da economia brasileira. Em dezembro o volume vendido no varejo restrito foi 3,3% maior que o de um ano antes. No varejo ampliado, isto é, com inclusão de veículos e componentes e também de material de construção, o total ficou 6,6% acima do anotado em dezembro de 2016. Muito mais que a variação de um mês para outro, sujeita a oscilações de curtíssimo prazo, a comparação dos dados com os números do ano anterior mostra a tendência de reativação e fortalecimento dos negócios. O recuo das vendas de novembro para dezembro – 1,5% no comércio restrito e 0,8% no ampliado – reflete claramente o efeito estatístico das promoções da Black Friday, estendidas de fato durante a maior parte do mês. A linguagem seria mais precisa, no Brasil, se a expressão usada fosse Black November. Com isso, muita gente antecipou em um mês as compras de fim de ano.
No ano, as duas séries de venda foram superiores às de 2016. No conceito restrito o aumento foi de 2%. No ampliado, de 4%. No primeiro caso, o ganho acumulado em 12 meses foi o maior desde os 2,2% registrados em dezembro de 2014. No segundo, foi o mais alto desde fevereiro também de 2014 (6,4%). Nesse ano, a crise já havia atingido brutalmente a atividade industrial, mas o emprego e o consumo só seriam arrasados pela recessão a partir de 2015.
Os novos números do comércio complementam os dados da produção industrial acumulada em 2017. O segmento de bens de consumo fabricou 3,2% mais que em 2016. O melhor desempenho foi o da indústria de bens de consumo duráveis, como veículos, móveis e produtos eletroeletrônicos, com expansão de 13,3%, em grande parte facilitada pelo aumento do crédito a pessoas físicas. Os produtores de bens semiduráveis e não duráveis tiveram ganho bem menor, de 0,9%, mas isso se explica em parte pela menor oscilação do consumo, medido em volume, de produtos essenciais, como alimentos. Ainda assim, as vendas de alguns semiduráveis e não duráveis cresceram de forma sensível no ano. Os aumentos de 7,6% no varejo de tecidos, vestuário e calçados e de 2,5% no de artigos farmacêuticos, médicos e de perfumaria são exemplos da melhora no consumo.
No caso dos duráveis, as vendas de veículos, motos e partes foram 2,7% maiores que as de janeiro a dezembro de 2016. As de material de construção ficaram 9,2% acima das de um ano antes. Este é um resultado aparentemente estranho, porque a indústria de construção permaneceu estagnada na maior parte do ano. As vendas podem ser um sinal de reformas e obras conduzidas pelos próprios consumidores.
Para avaliar com realismo os números tanto do varejo como da indústria é preciso levar em conta a base de comparação – o ano anterior, quando o nível de atividade era ainda muito baixo e o desemprego, muito alto. Os dados aparentemente espetaculares das montadoras de veículos, com crescimento de 17,2% no volume produzido, são mais facilmente compreensíveis quando vinculados à base deprimida.
Mesmo com essa correção de perspectiva, o cenário é de modo geral positivo e estimulante. A inflação contida certamente contribuiu de forma importante para o retorno às compras. Em 2017, o Índice de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA) subiu 2,95% e ficou abaixo do limite inferior da margem de tolerância, de 3%. A preservação da renda real das famílias, combinada com a redução do desemprego e com a melhora de perspectiva, facilitou a retomada do consumo.
Resta um longo caminho para o retorno aos níveis de atividade anteriores à crise. No caso da indústria, a distância é mais desafiadora, porque o declínio do setor começou bem antes do mergulho do País na recessão. Se houver confiança na economia e fundamentos seguros, o percurso será mais firme e mais direto. Os fundamentos dependerão, é claro, da manutenção do programa de ajustes e da realização de reformas indispensáveis à saúde financeira do Estado e à credibilidade internacional do País.
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Paraitinga da folia, Bruna Toni, O Estado de S. Paulo


Apenas marchinhas foram permitidas no carnaval deste ano


13 Fevereiro 2018 | 03h00
Carnaval em São Luiz do Paraitinga
Bloco Juca Teles, um dos mais famosos de Paraitinga  Foto: Roosevelt Cassi/Reuters
Caiu uma chuva daquelas que, estivéssemos eu e você voltando para casa após um dia de trabalho, nosso bom humor teria ido junto com a água. Mas era fevereiro, era carnaval, e nós desfilávamos, eu e minha amiga, nossos adereços e saias de chita pelo centro histórico de São Luiz do Paraitinga, um clássico dos destinos foliões.
Nem de longe a chuva estragou a festa. Ao contrário, aliviou a pressão do sol quente que brilhava na cidade do interior de São Paulo desde as primeiras horas do dia. E aprimorou o que o carnaval é capaz de fazer facilmente: unir as pessoas, que cantavam os mesmos versos das marchinhas históricas da cidade, incansavelmente. “Ooo, Barbosa / Essa curva é perigosa...” Íamos felizes sob a chuva, dando voltas na praça da Igreja Matriz. 
Se você nunca foi ao carnaval de Paraitinga, este é o clima por lá. A tríade cidade histórica, marchinhas e tradição é sua essência e faz com que a festa esteja no grupo daquelas que devem ser conhecidas.
Foi triste saber do cancelamento, em 2017, da programação oficial de carnaval por falta de verba. Além disso, um conjunto de regras foi decretado à época. Para “manter a ordem”, proibiu-se, por exemplo, caixas de som nas vias públicas e determinou-se o fechamento dos bares até meia-noite. 
Em 2018, o carnaval luziense voltou a existir oficialmente, com expectativa de atrair 150 mil pessoas. Felicidade geral. “Juca Teles / Amora em flor, boca do povo / São palabras de amor...”.  
 A festa, porém, veio com ainda mais restrições. Entre elas, a que proibiu, sob multa de R$ 1.028, qualquer estilo musical que não seja marchinha nas áreas delimitadas para o evento, incluindo o centro histórico. Outra proibiu garrafas de vidro no espaço. Uma terceira determinou bares fechados na passagem dos blocos e bandas, das 20h até meia-noite. Houve taxas para motorizados de R$ 10 a R$ 150; zona azul de R$ 25 a R$ 500; e multa para quem fizesse xixi na rua. Ufa! 
 A lista de regras da prefeitura de Ana Lúcia Bilard Sicherle (PSDB) traz à tona muitas discussões sobre liberdade individual e coletiva e preservação histórica e cultural. No que diz respeito à exclusividade das marchinhas, um dos argumentos do secretário de cultura de Paraitinga, Netto Campos, apoia-se na tradição. “Não tem sentido abrir mão de algo tão tradicional”, disse ele. 
 Confesso que minha primeira reação diante disso foi a da recusa. O que não faz sentido é que o poder público determine o que as pessoas vão ouvir numa festa de rua e popular. Por outro lado, me preocupo que festas populares sejam atropeladas pela indústria pop. É também verdade que a disputa de individualismos pode resultar num duelo onde não se ouve nem funk, nem sertanejo, tampouco Juca Teles. E que isso incomode, sobretudo, os moradores – destinos turísticos de festa têm sempre de lidar com os bônus e ônus. 
Diante de tantas variáveis, a questão parece complexa para se resumir ser a favor ou contra. Também é impossível encerrar aqui a reflexão sobre o fato de que nem as tradições podem escapar das mudanças que o tempo traz. 
É, contudo, difícil aceitar que a proibição seja o melhor caminho para a reeducação que, acredito, se pretende com tais regras. Mas é o caminho mais fácil, e, infelizmente, o mais adotado pelo poder público. Proibir não faz a tradição ser preservada como consequência direta. Tampouco sugere uma mudança de consciência sobre os limites individuais. 
Apelei à memória e cheguei à conclusão de que naqueles meus dias de festa e chuva em Paraitinga, não conheci ninguém interessado em ouvir outra coisa que não as marchinhas dos blocos. Quando eles paravam de tocar, aí sim se ouvia uma ou outra música pop do momento. E, gostando ou não, compreendi que isso fazia parte da festa, de uma festa que, por essência, é livre e coletiva. 
Duvido que a maioria dos foliões que tenham ido ou pretendam ir a São Luiz do Paraitinga o façam por causa da caixa de som tocando Vai Malandra. Como folion que sou, ouso dizer que o risco de as marchinhas perderem seu protagonismo na festa luziense está longe de ocorrer. O número de pessoas atrás do novo boneco do Juca Teles talvez comprove esta opinião.