É comum brasileiros que utilizaram o sistema de trens de longa distância da Europa voltarem ao Brasil se perguntando por que aqui não existe essa opção de transporte. Pessoas mais velhas, que chegaram a usar ferrovias para viajar pelo interior dos Estados ao redor da década de 1950, também nutrem nostalgia desse tempo, que deixou estações vazias em diversas cidades.
A rede ferroviária brasileira, excluindo a de transporte urbano, tem
29 mil quilômetros de extensão. Em 1,6 mil quilômetros, ou 6% do total, passageiros são transportados. Nos outros 94% da rede, só se leva carga.
Há dois motivos que explicam por que o Brasil praticamente extinguiu o transporte de passageiros em trens nos trajetos mais longos, que conectavam cidades ou Estados: uma escolha política de priorizar as rodovias a partir dos anos 1940, e a maior rentabilidade, nas ferrovias, do transporte de cargas do que o de pessoas.
Presidentes preferiam estradas
A primeira linha brasileira de trem foi inaugurada em 1854, no Rio de Janeiro, e a malha ferroviária do país se expandiu fortemente de 1875 até por volta de 1920. Nesse período, as estradas de ferro eram uma opção comum para longos deslocamentos de pessoas.
Esse cenário começou a mudar com o presidente Washington Luís, que governou o país de 1926 a 1930 e era rodoviarista — alguns historiadores atribuem a ele a frase “governar é abrir estradas”. Ele priorizou a construção de rodovias para o transporte de passageiros, modelo seguido por Getúlio Vargas, até os anos 1940, e Juscelino Kubitschek, nos anos 1950, que buscou estimular as montadoras de automóveis como força motriz do crescimento do parque industrial brasileiro.
O regime militar, que durou de 1964 a 1985, conduziu uma reestruturação da malha ferroviária, cortando o número de servidores públicos no setor e mantendo somente os ramais mais eficientes, do ponto de vista econômico, para o transporte de cargas. Na década de 1990, o transporte de passageiros se tornou algo raro.
Hoje, há apenas três linhas de trem de longa distância transportando passageiros.
Duas são administradas pela mineradora Vale: uma liga Belo Horizonte (MG) a Vitória (ES), com 664 quilômetros, e a outra, São Luís (MA) a Parauapebas (PA), com 870 quilômetros. O transporte de passageiros nessas linhas é uma obrigação assumida pela mineradora no contrato de concessão assinado com o governo em 1997. Há um
terceira linha que liga Curitiba a Paranaguá, no Paraná, com 110 quilômetros, também concedida a uma empresa privada.
Nessa lista não estão incluídas 24 linhas
turísticas e comemorativas, a maioria de curta distância, mantidas pelo seu valor histórico e sem operações diárias, como a que liga São João Del Rei a Tiradentes, em Minas Gerais — ela tem 12 quilômetros e funciona de sexta a domingo.
Subsídio para trilhos foi reduzido
FOTO: REPRODUÇÃO/ESTAÇÕES FERROVIÁRIAS DO BRASIL
ESTAÇÃO FERROVIÁRIA EM AMERICANA, NO INTERIOR DE SP, EM 1916
Em regra, o transporte de cargas é mais rentável do que o de passageiros em ferrovias de longo trajeto, segundo Guilherme Grandi, professor da Faculdade de Economia e Administração da USP e especialista na temática dos transportes. Por isso, em todo o mundo é comum que a operação de trens de passageiros seja acompanhada de algum tipo de subsídio do poder público, que investe no sistema por considerá-lo mais eficiente a longo prazo para seus cidadãos.
Não foi diferente no Brasil. O transporte de passageiros de ferrovias no país se expandiu, no final do século 19, graças a subsídio do Estado. O poder público garantia uma remuneração de 7% sobre o capital privado investido em ferrovias — o governo geral, que representava a União, emprestava 2%, e os governos provinciais, antecessores dos Estados, os outros 5%. O dinheiro podia ser devolvido ao poder público no longo prazo, à medida que a ferrovia se rentabilizasse.
O incentivo vantajoso atraiu muitos investidores ingleses e a malha ferroviária cresceu rapidamente,
sem planejamento adequado e às custas do aumento do déficit do governo. Poucas ferrovias conseguiram ressarcir os valores recebidos do poder público.
A partir de 1940, o governo federal começou a estatizar as ferrovias privadas, em função da dívida que elas tinham acumulado, e em 1957 formou a rede de ferrovias federais, a RFFSA.
A Companhia Paulista de Estradas de Ferro, ferrovia privada que conectava o interior do Estado de São Paulo e uma das poucas que conseguiu fazer do transporte de passageiros uma atividade lucrativa, conseguiu operar no azul até 1959. Em 1961, também foi estatizada, pelo governo paulista.
Transportar cargas é mais viável economicamente
FOTO: REPRODUÇÃO/ANTT
ATUAL MALHA FERROVIÁRIA BRASILEIRA
A disposição de subsidiar o transporte de passageiros sob trilhos reduziu-se progressivamente diante do investimento em estradas e do estímulo aos automóveis, e as ferrovias brasileiras passaram a ser otimizadas para o transporte de cargas, que é mais lucrativo. Esse processo se intensificou na ditadura militar.
Nos anos 1990, o governo federal concedeu sua malha federal, que estava degradada em muitos trechos, para empresas de logística ou mineradoras, como a Vale. O período da concessão é de 30 anos, prorrogáveis por mais 30. Os investimentos privados que se sucederam elevaram a participação das ferrovias no transporte total de cargas, que passou de 15% em 1997 para 30% em 2011, segundo
pesquisarealizada pelo coordenador de infraestrutura do Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada), Carlos Campos Neto.
A rede ferroviária da
Argentinapassou por um processo semelhante ao brasileiro. Sua ampliação, no século 19, foi patrocinada com capitais ingleses e franceses. A rede alcançou cerca de 47 mil quilômetros no meio do século 20, quando se iniciou sua estatização e queda no volume de passageiros transportados.
Hoje a Argentina tem uma rede de trens de transporte de cargas de
18 mil quilômetros. Para transporte de pessoas, conta com três linhas turísticas e algumas linhas interestaduais que transportam cerca de 300 mil pessoas por mês.
Guilherme Grandi, da USP, afirma que o modelo de ferrovias destinadas majoritariamente ao transporte de carga e controladas por grandes grupos empresariais é um modelo que se aplicou a toda a América Latina. Para ele, o retorno do transporte de passageiros por trens depende da existência de uma política pública específica voltada para essa modalidade de transporte.
O caso europeu
Apesar de não ser tão lucrativo como o transporte de cargas, o transporte de passageiros por trilhos tem vantagens sobre o rodoviário, como maior segurança, maior eficiência econômica e menor emissão de poluentes, segundo Grandi. Por isso, diversos países pelo mundo, como os europeus, decidiram subsidiar esse modo de transporte.
Em 2008, por exemplo, a França gastou € 6,8 bilhões e a Alemanha, € 4,7 bilhões em
subsídios para seus sistemas de transporte por trilho.
Tentativas para reativar os trens de passageiros
O governo da ex-presidente Dilma Rousseff lançou, em 2011, uma licitação para construir um trem de alta velocidade entre São Paulo e Rio, mas nenhuma empresa se interessou pelo projeto. Houve duas outras tentativas de licitação, também sem sucesso devido ao custo envolvido na empreitada, à necessidade de transferir tecnologia ao país e incertezas sobre o retorno financeiro. Em 2013, o governo
estimava que a obra custaria cerca de R$ 34 bilhões, mas analistas do setor privado projetavam R$ 50 bilhões.
Um grupo de trabalho composto por servidores da ANTT (Agência Nacional de Transportes Terrestres) e do Ministério do Trabalho, formado em 2013 para analisar a viabilidade da expansão do transporte de passageiros em trilhos, compilou estudos existentes para implementar o transporte de passageiros em
15 trechos pelo país.
Há projetos, por exemplo, para conectar a capital paulista a Sorocaba (SP), Brasília (DF) a Goiânia (GO), e Salvador a Feira de Santana, na Bahia, mas sem previsão de serem efetivamente licitados e entrarem em funcionamento. O trem entre São Paulo e Sorocaba, por exemplo, havia sido anunciado pelo governo paulista em 2013, mas em 2015 ainda estava
no papel.
Em setembro deste ano, o governo Michel Temer lançou um pacote de obras de infraestrutura por meio de parcerias com a iniciativa privada que incluem investimentos em três ferrovias, todas voltadas ao transporte de cargas: a Norte-Sul, que passaria por São Paulo, Minas Gerais, Goiás e Tocantins; a Ferrogrão, que integraria o Mato Grosso e o Pará; e a Ferrovia de Integração Oeste-Leste, na Bahia.
ESTAVA ERRADO: A primeira linha ferroviária brasileira foi inaugurada em 1854, e não em 1857, como informava a primeira versão deste texto. O material foi corrigido às 12h50 de 3 de janeiro de 2017.