domingo, 23 de novembro de 2014

Caloteiro, não!, in Alias

LUCIANO DE SOUZA GODOY - O ESTADO DE S. PAULO
22 Novembro 2014 | 16h 00

Na democracia todos são iguais perante a lei e o juiz é um cidadão que, como tal, deve ser punido, multado e cobrado de suas dívidas

MÁRCIO ALVES/AGÊNCIA O GLOBO
Souza Correia. Livro de 1965 ensina que juízes devem ter ‘humildade’ e ‘brandura de trato’
Chamaram-me a atenção as notícias relativas a um juiz no Estado do Rio que foi vitorioso em duas ações judiciais, as quais lhe renderão indenizações por danos morais. No primeiro caso, o mais divulgado, o julgamento já foi em grau de apelação no Tribunal de Justiça. Em um dia de 2011, uma agente de trânsito averiguava na blitz da Lei Seca se o cidadão ali a sua frente podia ou não dirigir. Reteve o veículo que não tinha placas de identificação. E mais, o cidadão não estava com a carteira de motorista nem tinha os documentos do veículo. 
Nesse cenário desfavorável, ele se identifica à servidora estadual como juiz de direito. Ela, já aborrecida com a situação, recebeu a dita “carteirada” na cabeça e não ia levar desaforo para casa. No meio da rua, soltou: “Se você é juiz, deve conhecer a lei”. E agora, cara-pálida? Ele foi chamado na chincha. Vai amarelar? Não amarelou, muito pelo contrário. Deu voz de prisão por desacato (crime de desrespeito a servidor público). Ela também não deixou barato e completou: “Quem ele pensa que é? Deus?”.
Neste mês, a Justiça do Estado do Rio condenou a servidora a pagar R$ 5 mil como danos morais ao juiz. Por ela não ter levado o desaforo para casa.
Na mesma semana, o mesmo juiz foi novamente vitorioso em outra ação judicial, com julgamento em primeira instância, agora contra um grande jornal do Rio, que publicou uma manchete e uma reportagem em 2011. A matéria dizia que o juiz não pagou a conta de energia elétrica, foi cobrado e, no ato, mandou prender o cobrador por desacato. A manchete de 2011 foi dura - “Juiz caloteiro”. A matéria reportava fatos de 2006, mas pegou esse gancho para trazer outras coisas desabonadoras. 
Dessas trágicas comédias cotidianas da vida brasileira, que reflexões podemos fazer? Em primeiro lugar, é importante dizer que não conheço o juiz noticiado nas matérias, nem aqui estou fazendo juízo de valor sobre os julgamentos; possivelmente, do ponto de vista estrito do direito, não mereçam críticas. Chamam-me a atenção os fatos narrados na imprensa. 
Nas histórias há alguns elementos - a dita carteirada, a prisão por desacato, a divulgação dos fatos pela imprensa, o direito de recorrer ao Judiciário para pleitear danos morais. O exercício da carteirada, que autoridades públicas ainda insistem em praticar, resquício da ditadura, expressão da falta de noção de igualdade dos cidadãos em uma democracia, mostra-se uma ideia enraizada nas atitudes de parte das autoridades. Não sou sociólogo para explicar, mas nem precisaria. Na democracia todos são iguais. O juiz é um cidadão e como tal deve ser punido, multado, parado no trânsito, cobrados das suas dívidas. Precisa aguardar em filas e até mesmo deve ser preso se violar a lei, como outro cidadão. A carteirada é um absurdo porque dá privilégio a uma pessoa num momento que está fora do exercício da função pública. 
No livro O Juiz, de Edgard de Moura Bittencourt, publicado em 1965, o autor não economiza palavras para dar o desenho do perfil de personalidade do juiz: independência, humildade, coragem, altruísmo, compreensão, bondade e brandura de trato, a par de energia de atitudes e amor ao estudo e ao trabalho. O juiz, formado em direito e após um duro concurso, receberá da sociedade a incumbência profissional de julgar seus pares. Seu perfil não combina com a prática da carteirada. Aliás, um só fator bastaria para se repudiar a atitude: bom senso. 
Por sua vez, o crime de desacato pune alguém pelo descumprimento de ordem de qualquer autoridade no exercício da função. Sua razão se baseia na necessidade social de darmos efetividade às ordens das autoridades públicas com vista ao cumprimento das normas e sua execução. Entretanto, há também o tipo penal do abuso de autoridade. Caberá à Justiça decidir, em cada caso, se houve ou não abuso na ordem de prisão por desacato.
Nos fatos que mencionamos acima, o juiz praticou a carteirada, o jornal divulgou os fatos porque ficaram públicos e o juiz pleiteou judicialmente uma indenização por danos morais. Poderia? 
Penso que não. O Supremo Tribunal Federal possui decisões reiteradas pela liberdade de imprensa, sem restrições, especialmente quando relacionadas a fatos que envolvam autoridades públicas. Também não há possibilidade de indenização por danos morais porque a divulgação dos fatos, mesmo com críticas ácidas e mordazes aos atos das autoridades públicas, faz parte da liberdade de imprensa no País. É o papel do jornalista na sociedade - um pilar fundamental da democracia - informar, divulgar os fatos, criticar e avaliar. No recurso extraordinário nº 722.744, relator ministro Celso de Mello, foi afastada a condenação por danos morais pela divulgação com críticas mordazes de ato de um governador. Esses precedentes derivam do entendimento consolidado de prestigiar a liberdade de imprensa, resultado do julgamento da ação de descumprimento de preceito fundamental nº 130.
Havendo liberdade de imprensa, não pode haver danos morais na divulgação jornalística dos fatos relacionados ao exercício da autoridade. Se uma autoridade se propõe a exercer cargo público, inerente a esse se dá a investidura em parcela do poder estatal para o cumprimento da lei. A atividade é pública e, como tal, pode ser divulgada sem restrições. E, se o exercício da função do agente é pública, não se pode alegar violação da privacidade e muito menos intimidade como fundamento da violação para resultar em danos morais na má condução do exercício dessa função pública. 
Com juízes profissionais, bem remunerados (que não são!), com um volume de trabalho adequado, bem como com a imprensa independente e crítica, avançaremos na democracia brasileira com cada vez menos carteiradas.
*
Luciano de Souza Godoy é advogado, ex-juiz federal e professor da FGV Direito SP

sexta-feira, 21 de novembro de 2014

A sinceridade de Ricardo Semler versus a hipocrisia de FHC

Postado em 21 nov 2014
Semler
Semler
Um artigo do empresário tucano Ricardo Semler publicado hoje na Folha repercute intensamente nas redes sociais.
Semler recrimina a “santa hipocrisia” com que tantos comentam o caso Petrobras.
Para ele, o que ocorrendo agora é motivo de celebração – nomear e punir empresas e executivos que há décadas corrompem, impunemente, a política nacional.
Semler refere-se com desgosto aos “envergonhados”, que fingem que os problemas da Petrobras só aconteceram depois que o PT chegou ao poder.
Ele não citou, mas ficou claro que ele falava de FHC, que afirmou sentir vergonha ao ver o que se passa na Petrobras.
Vergonha é uma pessoa dizer que sente vergonha de algo de que ela mesma se beneficiou. A este tipo de coisa, indignação simulada, você dá o nome de demagogia.
FHC, que começou tão bem na política, como um renovador de esquerda depois da ditadura, vai encerrando sua carreira como um demagogo, um hipócrita, um mistificador.
Que os petistas o detestem, é previsível: os anos trouxeram uma rivalidade destrutiva entre FHC e Lula.
Mas quando tucanos como Semler não seguram a irritação é porque algum limite foi rompido.
FHC virou uma paródia de si mesmo.
Ele parece ter perdido a noção das coisas. Poucos dias atrás, ele disse que não falava dos “amigos” quando lhe pediram uma palavra sobre a mídia.
FHC insultou, involuntariamente, a si próprio e aos “amigos”.
Um dos maiores editores de todos os tempos, se não o maior, o americano Joseph Pulitzer, dizia que a regra número 1 do jornalista é não ter amigos.
Não porque o bom jornalista deva ser misantropo, mas porque amizades interferem na maneira como você pratica o jornalismo.
O jornalista que tem amigos vai tratar de protegê-los.
Para que você tenha uma ideia da importância do mandamento de Pulitzer, foi exatamente graças aos “amigos” que FHC escapou incólume no escândalo da compra de votos no Congresso para a emenda da sua reeleição, no final da década de 1990.
A imprensa engavetou o assunto, e poupou o “amigo”.
A que preço? Publicidade governamental portentosa, financiamentos em bancos públicos a juros maternais, compras maciças de livros das empresas jornalísticas, vistas grossas para malandragens fiscais – tudo aquilo, enfim, que foi dar nas imensas fortunas pessoais dos donos da mídia.
Os “amigos” também jamais questionaram decisões nepotistas como a de entregar a estratégica Agência Nacional de Petróleo a seu genro, demitido tão logo acabou o casamento.
O papel de FHC na história foi-se apequenando miseravelmente.
Mesmo a estabilização – a todo momento citada por seguidores como sua grande contribuição ao país – é questionada em sua paternidade. Qual o papel de Itamar Franco no Plano Real? É tão insignificante quanto afirma FHC, ou houve uma usurpação de autoria aí?
A inflação, já que falamos nela, acabou quando a sociedade decidiu que já não a suportava mais. O resto foi consequência desse despertar.
O que aconteceu com a inflação parece estar prestes a ocorrer com FHC, como sugere a manifestação de Ricardo Semler.
Ninguém aguenta mais.
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Nunca se roubou tão pouco
Não sendo petista, e sim tucano, sinto-me à vontade para constatar que essa onda de prisões de executivos é um passo histórico para este país
Nossa empresa deixou de vender equipamentos para a Petrobras nos anos 70. Era impossível vender diretamente sem propina. Tentamos de novo nos anos 80, 90 e até recentemente. Em 40 anos de persistentes tentativas, nada feito.
Não há no mundo dos negócios quem não saiba disso. Nem qualquer um dos 86 mil honrados funcionários que nada ganham com a bandalheira da cúpula.
Os porcentuais caíram, foi só isso que mudou. Até em Paris sabia-se dos "cochons des dix pour cent", os porquinhos que cobravam 10% por fora sobre a totalidade de importação de barris de petróleo em décadas passadas.
Agora tem gente fazendo passeata pela volta dos militares ao poder e uma elite escandalizada com os desvios na Petrobras. Santa hipocrisia. Onde estavam os envergonhados do país nas décadas em que houve evasão de R$ 1 trilhão --cem vezes mais do que o caso Petrobras-- pelos empresários?
Virou moda fugir disso tudo para Miami, mas é justamente a turma de Miami que compra lá com dinheiro sonegado daqui. Que fingimento é esse?
Vejo as pessoas vociferarem contra os nordestinos que garantiram a vitória da presidente Dilma Rousseff. Garantir renda para quem sempre foi preterido no desenvolvimento deveria ser motivo de princípio e de orgulho para um bom brasileiro. Tanto faz o partido.
Não sendo petista, e sim tucano, com ficha orgulhosamente assinada por Franco Montoro, Mário Covas, José Serra e FHC, sinto-me à vontade para constatar que essa onda de prisões de executivos é um passo histórico para este país.
É ingênuo quem acha que poderia ter acontecido com qualquer presidente. Com bandalheiras vastamente maiores, nunca a Polícia Federal teria tido autonomia para prender corruptos cujos tentáculos levam ao próprio governo.
Votei pelo fim de um longo ciclo do PT, porque Dilma e o partido dela enfiaram os pés pelas mãos em termos de postura, aceite do sistema corrupto e políticas econômicas.
Mas Dilma agora lidera a todos nós, e preside o país num momento de muito orgulho e esperança. Deixemos de ser hipócritas e reconheçamos que estamos a andar à frente, e velozmente, neste quesito.
A coisa não para na Petrobras. Há dezenas de outras estatais com esqueletos parecidos no armário. É raro ganhar uma concessão ou construir uma estrada sem os tentáculos sórdidos das empresas bandidas.
O que muitos não sabem é que é igualmente difícil vender para muitas montadoras e incontáveis multinacionais sem antes dar propina para o diretor de compras.
É lógico que a defesa desses executivos presos vão entrar novamente com habeas corpus, vários deles serão soltos, mas o susto e o passo à frente está dado. Daqui não se volta atrás como país.
A turma global que monitora a corrupção estima que 0,8% do PIB brasileiro é roubado. Esse número já foi de 3,1%, e estimam ter sido na casa de 5% há poucas décadas. O roubo está caindo, mas como a represa da Cantareira, em São Paulo, está a desnudar o volume barrento.
Boa parte sempre foi gasta com os partidos que se alugam por dinheiro vivo, e votos que são comprados no Congresso há décadas. E são os grandes partidos que os brasileiros reconduzem desde sempre.
Cada um de nós tem um dedão na lama. Afinal, quem de nós não aceitou um pagamento sem recibo para médico, deu uma cervejinha para um guarda ou passou escritura de casa por um valor menor?
Deixemos de cinismo. O antídoto contra esse veneno sistêmico é homeopático. Deixemos instalar o processo de cura, que é do país, e não de um partido.

O lodo desse veneno pode ser diluído, sim, com muita determinação e serenidade, e sem arroubos de vergonha ou repugnância cínicas. Não sejamos o volume morto, não permitamos que o barro triunfe novamente. Ninguém precisa ser alertado, cada de nós sabe o que precisa fazer em vez de resmungar.


quinta-feira, 20 de novembro de 2014

Terremoto na política e na economia


A gigante Petrobrás tenta não só blindar politicamente a presidente e o governo, seu acionista majoritário, mas também manter-se regular e legal no mercado.
A Operação Lava-Jato, com sede em Curitiba (PR), até aqui fez pouco barulho sobre a escandalosa compra da refinaria de Pasadena, no Texas (EUA) – inquérito hoje sob comando da Polícia Federal de Brasília, com apoio do Ministério Público do Rio.
Mas é sobre este caso que o Conselho de Administração da Petrobrás toma  suas primeiras medidas punitivas contra ex-altos funcionários. O mesmo acontece no âmbito do governo federal, via Controladoria-Geral da União (CGU).
É interessante notar que o Conselho da Petrobrás agiu mesmo tendo recebido, na última semana de julho, um atestado de boa conduta da Procuradoria- Geral da República (PGR) e do Tribunal de Contas da União (TCU).
Por que não continuar quieto, já que os dois órgãos federais livraram o Conselho de culpa pelos prejuízos de US$ 800 milhões com a aquisição de Pasadena? Os responsáveis, segundo a PGR e o TCU, seriam outros – sobretudo a diretoria ativa em 2006, época da transação.
Com em julho ainda não existia o pesadelo da delação premiada do ex-diretor  Paulo Roberto Costa, as  duas decisões foram consideradas uma vitória política - sobretudo para a campanha à reeleição da presidente Dilma Rousseff, que se iniciava.
Relembrando: presidente do Conselho da Petrobrás de 2003 a 2010, a então ministra Dilma votou a favor da  malfadada operação de Pasadena. E justificou ter sido induzida a erro por “resumo técnico e juridicamente falho”.
Ao engavetar a ação por improbidade proposta contra a presidente por senadores, o procurador-geral Rodrigo Janot não fez referência, em seu despacho, ao Estatuto da Petrobrás ou à Lei das Sociedades por Ações. Tampouco o fez o TCU.
Entretanto, estes dois instrumentos jurídicos obrigaram sim a Petrobras a agir. Segundo o Estatuto, a diretoria-executiva e o Conselho, que tem função de direção superior,  “responderão,  nos termos do art. 158, da Lei nº 6.404, de 1976, pelos atos que praticarem e pelos prejuízos que deles decorram para a Companhia.”
A lei citada, que regula  as sociedades anônimas, destaca que “o administrador não é responsável por atos ilícitos de outros administradores,  salvo se com eles for conivente, se negligenciar em descobri-los ou se, deles tendo conhecimento, deixar de agir para impedir a sua prática.” (grifo meu). Ou seja: o Conselho atual, presidido pelo ministro demissionário da Fazenda Guido Mantega, não poderia mais fingir-se de morto.
Acossada por investigações aqui e no exterior, com seu valor de mercado e sua imagem em queda livre, a gigante Petrobrás tenta não só blindar politicamente a presidente e o governo, seu acionista majoritário, mas também manter-se regular e legal no mercado. Tem sido esta a ginástica diária de Graça Foster, amiga de Dilma.
Diferentemente de outros grandes escândalos, o “petrolão” é, ao mesmo tempo, um terremoto na política e na economia. O pior dos mundos para qualquer governo. E para qualquer país.