segunda-feira, 20 de outubro de 2014

Pedagogia do atraso



EDUARDO PORTELLA - O ESTADO DE S. PAULO
18 Outubro 2014 | 16h 00

O tema da educação sempre surge em período eleitoral para cair no esquecimento logo depois




LUIS CLEBER
Eterna reivindicação. A educação, ou é de qualidade ou não é, diz autor

Os períodos eleitorais costumam dedicar especial cuidado à educação. Um cuidado só proporcional ao esquecimento pós-eleitoral. Uns enfatizam a importância do ensino superior, do médio, do fundamental e prometem a multiplicação das creches. Até aí, nenhuma novidade. Mas se esquecem que, em matéria de educação, tudo é prioritário. Do pré ao pós. Chego até a imaginar que a pós-graduação começa no pré-escolar.
No que diz respeito ao ensino médio, os indicadores oficiais e oficiosos apontam para acentuada perda de rendimento. Em 16 Estados houve substancial retrocesso. Permanecemos dessincronizados face à velocidade das mudanças.
As questões do acesso nos diferentes níveis precisam ser reprogramadas, alargando-se a interlocução entre professores e alunos. Sem esquecer dos empresários empreendedores. E daí configurando o novo desenho da profissionalização, capaz de atender à formação de quadros, em consonância com as atuais exigências da gestão pública e privada. Vem se tornando insuportável o déficit da gestão em um país que é candidato, até aqui reincidente, a vaga no mapa das potências emergentes.
O pré-requisito dessa jornada, realista ou apenas ambiciosa, é o compromisso da qualidade. A educação, ou é de qualidade ou não é. É o que venho chamando de uma pedagogia da qualidade. Seria uma redundância se não continuasse a ser uma questão em aberto. Somente a educação de qualidade, mais especificamente hoje, é capaz de promover a inclusão social. Caso contrário, distante do pacto qualitativo, ela não passará de um perigoso agente da exclusão social. A qualidade jamais é concebida abstratamente, sem chá e sem pouso, mero troféu de guerra. Ela é o ponto de encontro e de desencontro entre o conjunto de demandas historicamente enraizadas e as incertezas da vida cotidiana. Logo, depende de todos nós.
O papel e o lugar do professor não têm sido satisfatoriamente compreendidos. Ao lado da valorização profissional e remunerativa, seu exercício cotidiano necessita de condições de trabalho adequadas, de instrumentos técnicos atualizados, de laboratórios e bibliotecas convenientemente equipados.
Por isso mesmo reivindico, para o professor do nosso tempo, a condição de carreira de Estado, distante de vento e tempestades ocasionais. Como o caso da carreira de diplomata. O professor independe do diplomata. Já o diplomata não se habilita sem passar pelo professor. Sobretudo agora, quando a diplomacia cada vez mais funciona menos.
O professor deve ser visto e tratado como protagonista da frente comum da reconstrução nacional. E tendo em vista a diferença entre o país adiado e o país com os prazos vencidos. Eles quase nunca coincidem. O Brasil se encontra no primeiro caso. 
Convém não negligenciar a interface estrutural entre educação e a cultura, hoje separadas em dois ministérios distintos. A educação é a cultura escolarizada, enquanto a cultura vem a ser a educação transescolar. Ambas aguardam, com certa ansiedade, o encontro, ou a parceria, entre o virtuoso e o virtual, transitando pelas grandes veredas e os pequenos sertões, o transitório e o transitivo, o endividamento e o controle.
A educação deve ser um projeto social vazado de interlocução intelectual, recorrendo à participação pública e privada, e mesmo ao intercâmbio criterioso de trocas materiais e capital simbólico. É altamente preocupante a deficiência operacional de nossa gestão administrativa, justamente porque têm faltado a ela educação e cultura. 
Há todo um esforço a ser desenvolvido, tendo como força motriz a vontade de transformação, inscrita na reinvenção da democracia, hoje abalada pela corrupção representativa alimentada pela fraude política, pela desqualificação do Estado, pela instabilidade econômica, pela globalização de mão única. Por todas essas razões, ou desrazões, as nossas contas educacionais permanecem no vermelho.
*
Eduardo Portella é escritor, professor e advogado. Ex-ministro da Educação e membro da Academia Brasileira de Letras (ABL), é autor de 'Jorge Amado - a sabedoria da fábula' (Tempo Brasileiro

Volta atrás (não lido)


WAGNER IGLECIAS - O ESTADO DE S. PAULO
18 Outubro 2014 | 16h 00

A reprimarização da economia na América Latina

JOSÉ PATRÍCIO/ESTADÃO
A soja avança. Fronteira agrícola passa por Argentina, Paraguai, Bolívia e Brasil
A história oficial nos ensina que a América Latina foi descoberta em 1492, quando Cristóvão Colombo chegou às Antilhas. Mas há controvérsias se os contatos entre europeus e os povos do Novo Mundo não possam ter ocorrido antes disso. Independentemente de datas oficiais, assim que o projeto de expansão ultramarina europeu aportou pela primeira vez nesta região do mundo ela começou a ser integrada à economia capitalista global. E numa condição subalterna, destinada a sustentar o padrão de acumulação de Espanha e Portugal e, na sequência, de Inglaterra, França e Holanda. Depois, dos EUA. Nosso papel no mundo a partir do século 16 foi notadamente o de provedores de bens primários para os centros dinâmicos do capitalismo. 
Exemplos de nossa vocação primária são inúmeros: a prata e o ouro nos Andes e no México, o açúcar no Caribe e no Nordeste brasileiro, a carne bovina, a lã e o trigo na Argentina, o salitre e o cobre no Chile, as frutas na América Central, o petróleo na Venezuela. Todos marcaram ciclos importantes de ascensão econômica de regiões de nosso continente, mas raramente foram suficientes para gerar prosperidade para setores mais amplos de nossas sociedades. Pelo contrário, constituíram-se como parte fundamental na construção dos terríveis índices de pobreza e má distribuição de renda encontráveis em várias partes da América Latina e resultando em sucessivos déficits comerciais com os países ricos. 
A Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (Cepal) já criticava, na década de 1950, essa excessiva dependência que as economias da região tinham da exportação de bens primários e recomendava a industrialização em substituição a importações como estratégia para a superação da antiga condição colonial. Governos de perfil mais intervencionista no Brasil, no México e na Argentina buscaram investir no desenvolvimento da indústria e na aliança entre empresários e trabalhadores com o objetivo de criar um modelo de desenvolvimento próprio. Era o nacional-desenvolvimentismo, que buscava um outro tipo de inserção, mais autônomo, na economia mundial. Colômbia, Chile, Peru e Venezuela, em menor medida, buscaram trilhar o caminho, enquanto os demais países da região permaneceram presos ao modelo primário-exportador. 
Desde pelo menos a década de 1970, no entanto, a indústria na América Latina tem enfrentado uma série de obstáculos para seu crescimento e, em alguns casos, até para sua sobrevivência. O esgotamento do nacional-desenvolvimentismo, seguido das reformas neoliberais dos anos 1990, expôs nossa indústria, muitas vezes de maneira pouco cuidadosa, à competição com concorrentes estrangeiros poderosos. Não apenas a abertura comercial açodada, mas também erros diversos nas políticas monetária e cambial também contribuíram para enfraquecer o setor industrial na competição com seus congêneres do exterior. 
Mais recentemente, por meio da expansão da economia chinesa e da incorporação de dezenas de milhões de pessoas à classe média naquele país, a América Latina recebeu um forte estímulo a reforçar seu histórico papel na economia mundial de exportador de bens minerais e agropecuários. A crise nas economias ocidentais de 2008 também tem contribuído para um novo ciclo de especialização econômica dos países periféricos. Duas tendências concomitantes e complementares têm caracterizado as relações econômicas da América Latina com o mundo nos últimos anos: o aumento dos investimentos estrangeiros no continente em atividades econômicas primárias e em infraestrutura voltada à exportação de bens primários. É uma situação dramática. De acordo com a Cepal, no ano de 2012, por exemplo, era a seguinte a participação de bens minerais e agropecuários no total das exportações (FOB) de algumas das maiores economias da região: Brasil, 65,3%; Argentina, 68,8%; Colômbia, 83,5%; Chile, 86,2%; e Peru, 88,5%. A única exceção era o México, com apenas 27,3%. Mas o México é isso mesmo, uma exceção na região, na medida em que após a adesão ao Tratado de Livre Comércio da América do Norte, há 20 anos, converteu-se numa plataforma industrial intensiva em mão de obra voltada à montagem de manufaturados e sua exportação para os EUA. E, embora a Cepal não apresente dados sobre a Venezuela, é de se supor que permaneça a dependência quase absoluta daquele país em relação ao petróleo, já que em 2011 as receitas obtidas com a venda do bem no mercado mundial corresponderam a 95,5% do total das exportações. 
Evidências dão conta também de que a América Latina vive neste momento um novo ciclo da atividade mineradora. Brasil e região andina têm sido destaques nesse quesito. Impactos ambientais, questões trabalhistas e prejuízos para populações indígenas vivendo há séculos sobre regiões ricas em minerais são apenas alguns problemas relacionados à atividade. Destaque-se também a contínua expansão da fronteira agrícola da soja, que hoje se estende do Pampa argentino ao sul da Amazônia, passando por grande parte do território paraguaio, por toda a planície boliviana e pelo Cerrado brasileiro, quase a monopolizar a atividade agrícola. 
A crise econômica de 2008 nos países ricos também tem contribuído para a reiteração de nossa tradicional vocação econômica. A pressão por acordos bilaterais entre nossos países com economias em crise deverá expor, uma vez mais, nossa indústria à competição com concorrentes mais capacitados e é possível que apenas uns poucos ramos possam fazer frente a isso. E é bastante provável que venhamos a assistir, nos próximos anos, ao aprofundamento do processo de reprimarização da economia latino-americana já em curso. 
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Wagner Iglecias, doutor em Sociologia, é professor da Escola de Artes, Ciências e Humanidades e do Programa de Pós-graduação em Integração da América Latina da USP

Complacência e calamidade

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LEE SIEGEL - O ESTADO DE S. PAULO
18 Outubro 2014 | 16h 00

Do mesmo modo que facilitamos com o Ebola, continuamos a negligenciar o fantasma do aquecimento global

Shutterstock
Inferno californiano. Estado enfrenta a sua pior seca em 500 anos
Este pode não ser o momento para pensarmos na questão do aquecimento global, mas na epidemia de Ebola que aflige três países da África Ocidental, vem se disseminando pela Europa e EUA e expôs a grande vilã da história: a complacência. Foi a complacência que levou as autoridades americanas a não estabelecer diretrizes para os trabalhadores da saúde encarregados de casos de Ebola; foi a complacência que fez alguns desses trabalhadores levarem sua vida como se não tivessem nenhuma proximidade com o mais perigoso vírus do mundo. E foi por causa da complacência que - pelo menos neste país - o tema do aquecimento global foi retirado da agenda nacional.
São infindáveis os efeitos da complacência, como também não há fim para as crises globais. As secas continuam a atormentar o Brasil e o sul da Califórnia, mas o aquecimento global - e novamente nos EUA - deixou amplamente de ser um problema de natureza pública importante.
Esse é um fenômeno estranho porque, pela primeira vez, um órgão governamental declarou que o aquecimento global teve efeitos funestos imediatos sobre os atuais acontecimentos. Na semana passada o Pentágono divulgou relatório no qual responsabiliza a mudança climática, entre outras coisas, pelo surgimento de condições que contribuíram para o crescimento do EI, a nova ameaça terrorista do Oriente Médio. Com base no relatório, climas mais quentes provocaram a seca e escassez de água que levaram agricultores sírios a se transferirem para as cidades, dando origem à enorme população de jovens desesperados vulneráveis à sedução do extremismo político. As autoridades americanas esperam que a análise alarmante do Pentágono quanto aos efeitos da mudança climática hoje ajudem a convencer as nações mais poluidoras, onde o nível de carbono é extremo, a assinar um novo documento para reduzir suas emissões quando se reunirem no Peru, em dezembro, e depois em Paris, no ano que vem.
À parte a repentina e breve atenção despertada pelo relatório do Pentágono, o aquecimento global desapareceu quase inteiramente da agenda nacional nos EUA - ao contrário do Brasil, onde a atenção para o problema levou o país a se tornar o que mais se empenhou no mundo para combater a poluição pelo carbono. Uma mudança radical com relação a oito anos passados, quando o documentário de Al Gore Uma Verdade Inconveniente transformou a mudança climática num tema de séria preocupação nos EUA. Hoje, quando as eleições de meio de mandato para o Congresso se aproximam, nenhum candidato que conheço incluiu o problema do aquecimento climático em sua plataforma. 
O problema é que você não vê o aquecimento global se produzindo. A evidência de que a atmosfera da Terra vem se aquecendo não pode ser captada por nenhum dos cinco sentidos. Para cada evento catastrófico que os cientistas atribuem ao aquecimento global - seca, furacões, etc., - contrapõe-se o argumento de que eventos naturais sempre ocorreram, muito antes de os cientistas conseguirem medir a que ponto a atmosfera da Terra está esquentando. As secas e as tempestades de areia que destruíram a agricultura americana ocorreram na década de 1930 e não nos últimos dez anos. E os próprios cientistas só conseguem prever os efeitos do aquecimento global - não podem afirmar com certeza que ocorrerão.
Lucrécio escreveu certa vez que para muitas pessoas a morte é um boato. O mesmo princípio se aplica ao aquecimento global. Você não admite que a Terra seja mortal da mesma maneira que sabe que você mesmo é. E, como os filósofos sempre recomendaram, mesmo que você esteja plenamente consciente de sua inevitável extinção, não consegue aceitar que a própria Terra um dia seguirá seu curso natural para um fim, do mesmo modo que todas as coisas vivas. In saecula saeculorum, diz a oração Glória ao Pai - um mundo sem fim. “Se o inverno chegou, a primavera não estará distante”, escreveu Shelley, o mais pessimista dos poetas. Conceitos sobre a mortalidade deprimem. A noção de que o mundo está condenado deixa a existência sem sentido. 
Assim, há esse aspecto metafísico do aquecimento global, um assunto concreto. Ele tem um pé nas políticas públicas e nos eventos atuais e outro na ideia de fim do mundo. As religiões e filosofias tornaram o mundo objeto de investigação e reflexão. Não importa quão profundamente abordem a transitoriedade e a mortalidade, assumem que a realidade - nosso mundo, nossa Terra, nossa atmosfera - aguentará. Pedir, mesmo às pessoas mais responsáveis, conscientemente consumidas por pensamentos mortais, para aceitarem a realidade da finitude da Terra - a Terra, a verdadeira estrutura que torna nossa transitoriedade suportável - parece ser pedir demais.
Naturalmente, quando os oceanos inundarem as cidades, quando as colheitas cessarem, quando as migrações em massa deslocarem as populações, quando irromperem as guerras por recursos em extinção e hordas desesperadas pegarem em armas - quando tudo isso acontecer, o aquecimento global terá uma urgência tão extraordinária quanto as decapitações televisadas. Ele nem mesmo será chamado de aquecimento global, termo que implica um processo que ainda não se concretizou. Terá outro nome e será como o Ebola, surgido há quase 40 anos no Congo, para o qual as empresas farmacêuticas não tinham nenhum incentivo financeiro para desenvolver uma vacina. O Ebola não mais nos lembra a África, mas o que pode estar à frente no caminho, ou na porta vizinha. Calamidade é a irmã mais jovem da complacência. / TRADUÇÃO DE TEREZINHA MARTINO
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Lee Siegel, escritor e crítico cultural americano, é colaborador do NYT, The New Yorker e The Nation. Autor de 'Você Está Falando Sério?' (Panda Books)