WAGNER IGLECIAS - O ESTADO DE S. PAULO
18 Outubro 2014 | 16h 00
A reprimarização da economia na América Latina
A história oficial nos ensina que a América Latina foi descoberta em 1492, quando Cristóvão Colombo chegou às Antilhas. Mas há controvérsias se os contatos entre europeus e os povos do Novo Mundo não possam ter ocorrido antes disso. Independentemente de datas oficiais, assim que o projeto de expansão ultramarina europeu aportou pela primeira vez nesta região do mundo ela começou a ser integrada à economia capitalista global. E numa condição subalterna, destinada a sustentar o padrão de acumulação de Espanha e Portugal e, na sequência, de Inglaterra, França e Holanda. Depois, dos EUA. Nosso papel no mundo a partir do século 16 foi notadamente o de provedores de bens primários para os centros dinâmicos do capitalismo.
Exemplos de nossa vocação primária são inúmeros: a prata e o ouro nos Andes e no México, o açúcar no Caribe e no Nordeste brasileiro, a carne bovina, a lã e o trigo na Argentina, o salitre e o cobre no Chile, as frutas na América Central, o petróleo na Venezuela. Todos marcaram ciclos importantes de ascensão econômica de regiões de nosso continente, mas raramente foram suficientes para gerar prosperidade para setores mais amplos de nossas sociedades. Pelo contrário, constituíram-se como parte fundamental na construção dos terríveis índices de pobreza e má distribuição de renda encontráveis em várias partes da América Latina e resultando em sucessivos déficits comerciais com os países ricos.
A Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (Cepal) já criticava, na década de 1950, essa excessiva dependência que as economias da região tinham da exportação de bens primários e recomendava a industrialização em substituição a importações como estratégia para a superação da antiga condição colonial. Governos de perfil mais intervencionista no Brasil, no México e na Argentina buscaram investir no desenvolvimento da indústria e na aliança entre empresários e trabalhadores com o objetivo de criar um modelo de desenvolvimento próprio. Era o nacional-desenvolvimentismo, que buscava um outro tipo de inserção, mais autônomo, na economia mundial. Colômbia, Chile, Peru e Venezuela, em menor medida, buscaram trilhar o caminho, enquanto os demais países da região permaneceram presos ao modelo primário-exportador.
Desde pelo menos a década de 1970, no entanto, a indústria na América Latina tem enfrentado uma série de obstáculos para seu crescimento e, em alguns casos, até para sua sobrevivência. O esgotamento do nacional-desenvolvimentismo, seguido das reformas neoliberais dos anos 1990, expôs nossa indústria, muitas vezes de maneira pouco cuidadosa, à competição com concorrentes estrangeiros poderosos. Não apenas a abertura comercial açodada, mas também erros diversos nas políticas monetária e cambial também contribuíram para enfraquecer o setor industrial na competição com seus congêneres do exterior.
Mais recentemente, por meio da expansão da economia chinesa e da incorporação de dezenas de milhões de pessoas à classe média naquele país, a América Latina recebeu um forte estímulo a reforçar seu histórico papel na economia mundial de exportador de bens minerais e agropecuários. A crise nas economias ocidentais de 2008 também tem contribuído para um novo ciclo de especialização econômica dos países periféricos. Duas tendências concomitantes e complementares têm caracterizado as relações econômicas da América Latina com o mundo nos últimos anos: o aumento dos investimentos estrangeiros no continente em atividades econômicas primárias e em infraestrutura voltada à exportação de bens primários. É uma situação dramática. De acordo com a Cepal, no ano de 2012, por exemplo, era a seguinte a participação de bens minerais e agropecuários no total das exportações (FOB) de algumas das maiores economias da região: Brasil, 65,3%; Argentina, 68,8%; Colômbia, 83,5%; Chile, 86,2%; e Peru, 88,5%. A única exceção era o México, com apenas 27,3%. Mas o México é isso mesmo, uma exceção na região, na medida em que após a adesão ao Tratado de Livre Comércio da América do Norte, há 20 anos, converteu-se numa plataforma industrial intensiva em mão de obra voltada à montagem de manufaturados e sua exportação para os EUA. E, embora a Cepal não apresente dados sobre a Venezuela, é de se supor que permaneça a dependência quase absoluta daquele país em relação ao petróleo, já que em 2011 as receitas obtidas com a venda do bem no mercado mundial corresponderam a 95,5% do total das exportações.
Evidências dão conta também de que a América Latina vive neste momento um novo ciclo da atividade mineradora. Brasil e região andina têm sido destaques nesse quesito. Impactos ambientais, questões trabalhistas e prejuízos para populações indígenas vivendo há séculos sobre regiões ricas em minerais são apenas alguns problemas relacionados à atividade. Destaque-se também a contínua expansão da fronteira agrícola da soja, que hoje se estende do Pampa argentino ao sul da Amazônia, passando por grande parte do território paraguaio, por toda a planície boliviana e pelo Cerrado brasileiro, quase a monopolizar a atividade agrícola.
A crise econômica de 2008 nos países ricos também tem contribuído para a reiteração de nossa tradicional vocação econômica. A pressão por acordos bilaterais entre nossos países com economias em crise deverá expor, uma vez mais, nossa indústria à competição com concorrentes mais capacitados e é possível que apenas uns poucos ramos possam fazer frente a isso. E é bastante provável que venhamos a assistir, nos próximos anos, ao aprofundamento do processo de reprimarização da economia latino-americana já em curso.
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Wagner Iglecias, doutor em Sociologia, é professor da Escola de Artes, Ciências e Humanidades e do Programa de Pós-graduação em Integração da América Latina da USP
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