LEE SIEGEL - O ESTADO DE S. PAULO
18 Outubro 2014 | 16h 00
Do mesmo modo que facilitamos com o Ebola, continuamos a negligenciar o fantasma do aquecimento global
Este pode não ser o momento para pensarmos na questão do aquecimento global, mas na epidemia de Ebola que aflige três países da África Ocidental, vem se disseminando pela Europa e EUA e expôs a grande vilã da história: a complacência. Foi a complacência que levou as autoridades americanas a não estabelecer diretrizes para os trabalhadores da saúde encarregados de casos de Ebola; foi a complacência que fez alguns desses trabalhadores levarem sua vida como se não tivessem nenhuma proximidade com o mais perigoso vírus do mundo. E foi por causa da complacência que - pelo menos neste país - o tema do aquecimento global foi retirado da agenda nacional.
São infindáveis os efeitos da complacência, como também não há fim para as crises globais. As secas continuam a atormentar o Brasil e o sul da Califórnia, mas o aquecimento global - e novamente nos EUA - deixou amplamente de ser um problema de natureza pública importante.
Esse é um fenômeno estranho porque, pela primeira vez, um órgão governamental declarou que o aquecimento global teve efeitos funestos imediatos sobre os atuais acontecimentos. Na semana passada o Pentágono divulgou relatório no qual responsabiliza a mudança climática, entre outras coisas, pelo surgimento de condições que contribuíram para o crescimento do EI, a nova ameaça terrorista do Oriente Médio. Com base no relatório, climas mais quentes provocaram a seca e escassez de água que levaram agricultores sírios a se transferirem para as cidades, dando origem à enorme população de jovens desesperados vulneráveis à sedução do extremismo político. As autoridades americanas esperam que a análise alarmante do Pentágono quanto aos efeitos da mudança climática hoje ajudem a convencer as nações mais poluidoras, onde o nível de carbono é extremo, a assinar um novo documento para reduzir suas emissões quando se reunirem no Peru, em dezembro, e depois em Paris, no ano que vem.
À parte a repentina e breve atenção despertada pelo relatório do Pentágono, o aquecimento global desapareceu quase inteiramente da agenda nacional nos EUA - ao contrário do Brasil, onde a atenção para o problema levou o país a se tornar o que mais se empenhou no mundo para combater a poluição pelo carbono. Uma mudança radical com relação a oito anos passados, quando o documentário de Al Gore Uma Verdade Inconveniente transformou a mudança climática num tema de séria preocupação nos EUA. Hoje, quando as eleições de meio de mandato para o Congresso se aproximam, nenhum candidato que conheço incluiu o problema do aquecimento climático em sua plataforma.
O problema é que você não vê o aquecimento global se produzindo. A evidência de que a atmosfera da Terra vem se aquecendo não pode ser captada por nenhum dos cinco sentidos. Para cada evento catastrófico que os cientistas atribuem ao aquecimento global - seca, furacões, etc., - contrapõe-se o argumento de que eventos naturais sempre ocorreram, muito antes de os cientistas conseguirem medir a que ponto a atmosfera da Terra está esquentando. As secas e as tempestades de areia que destruíram a agricultura americana ocorreram na década de 1930 e não nos últimos dez anos. E os próprios cientistas só conseguem prever os efeitos do aquecimento global - não podem afirmar com certeza que ocorrerão.
Lucrécio escreveu certa vez que para muitas pessoas a morte é um boato. O mesmo princípio se aplica ao aquecimento global. Você não admite que a Terra seja mortal da mesma maneira que sabe que você mesmo é. E, como os filósofos sempre recomendaram, mesmo que você esteja plenamente consciente de sua inevitável extinção, não consegue aceitar que a própria Terra um dia seguirá seu curso natural para um fim, do mesmo modo que todas as coisas vivas. In saecula saeculorum, diz a oração Glória ao Pai - um mundo sem fim. “Se o inverno chegou, a primavera não estará distante”, escreveu Shelley, o mais pessimista dos poetas. Conceitos sobre a mortalidade deprimem. A noção de que o mundo está condenado deixa a existência sem sentido.
Assim, há esse aspecto metafísico do aquecimento global, um assunto concreto. Ele tem um pé nas políticas públicas e nos eventos atuais e outro na ideia de fim do mundo. As religiões e filosofias tornaram o mundo objeto de investigação e reflexão. Não importa quão profundamente abordem a transitoriedade e a mortalidade, assumem que a realidade - nosso mundo, nossa Terra, nossa atmosfera - aguentará. Pedir, mesmo às pessoas mais responsáveis, conscientemente consumidas por pensamentos mortais, para aceitarem a realidade da finitude da Terra - a Terra, a verdadeira estrutura que torna nossa transitoriedade suportável - parece ser pedir demais.
Naturalmente, quando os oceanos inundarem as cidades, quando as colheitas cessarem, quando as migrações em massa deslocarem as populações, quando irromperem as guerras por recursos em extinção e hordas desesperadas pegarem em armas - quando tudo isso acontecer, o aquecimento global terá uma urgência tão extraordinária quanto as decapitações televisadas. Ele nem mesmo será chamado de aquecimento global, termo que implica um processo que ainda não se concretizou. Terá outro nome e será como o Ebola, surgido há quase 40 anos no Congo, para o qual as empresas farmacêuticas não tinham nenhum incentivo financeiro para desenvolver uma vacina. O Ebola não mais nos lembra a África, mas o que pode estar à frente no caminho, ou na porta vizinha. Calamidade é a irmã mais jovem da complacência. / TRADUÇÃO DE TEREZINHA MARTINO
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Lee Siegel, escritor e crítico cultural americano, é colaborador do NYT, The New Yorker e The Nation. Autor de 'Você Está Falando Sério?' (Panda Books)
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