domingo, 6 de outubro de 2013

No papel, lei assegura direitos às minorias

No entanto, especialistas e grupos sociais avaliam que a isonomia garantida na Constituição ainda não se traduz no cotidiano

04 de outubro de 2013 | 22h 00

Lilian Venturini e Valmar Hupsel Filho - O Estado de S. Paulo
O caráter universalista da Constituição de 1988, com o princípio de que “todos são iguais perante a lei”, significou importante avanço na garantia dos direitos dos brasileiros, em especial às chamadas “minorias”. Após 25 anos, porém, especialistas e representantes de grupos sociais avaliam que a isonomia assegurada pela Carta ainda não se traduz de forma efetiva no cotidiano.
Para o professor de Direito Constitucional da USP, Rubens Decak, o diferencial da Constituição foi a forma mais abrangente com que foram observados os direitos, até mesmo aqueles que já eram previstos antes dela. “Basta ver o artigo 5.º da Constituição. Estão ali de maneira que abre a possibilidade de serem reconhecidos cada vez mais e melhor. Este é um salto diferencial tremendo”, diz.
Foi a forma como o texto foi construído, na opinião de Decak, que permitiu que a Carta reconhecesse a garantia de todos os direitos – políticos, sociais, trabalhistas – previstos no momento de sua promulgação, como a igualdade entre homens e mulheres. A Constituição, segundo ele, abriu a possibilidade para que demandas que se tornaram mais explícitas na sociedade nos anos seguintes fossem atendidas, a exemplo de garantia de direitos civis para casais do mesmo sexo. Essa reivindicação, no entanto, veio através da constitucionalidade decidida pelo Supremo Tribunal Federal, já que o Congresso nunca aprovou lei nesse sentido.
Além de assegurar garantias às mulheres, aos homossexuais e aos negros, os artigos da Carta serviram de inspiração para outras legislações. Segundo o constitucionalista Dimitri Dimoulis, professor da Direito GV, podem ser mencionados como consequência os Códigos de Defesa do Consumidor, do Idoso, da Criança e do Adolescente.
Apesar de enumerar dezenas de políticas públicas e leis elaboradas em resposta à Carta, como a Lei Maria da Penha e a revisão do Código Civil, a socióloga Guacira Oliveira pondera o longo tempo que parte delas levaram até saírem do papel. “O poder público ainda deve muito para garantir a igualdade que a Constituição nos assegurou”, afirma Guacira, que militava em movimentos feministas que apresentaram sugestões e demandas à Assembleia Constituinte na década de 80 e hoje faz parte do Centro Feminista de Estudos e Assessoria (Cfemea). A socióloga lembra da chamada PEC dos Trabalhadores Domésticos, que assegurou à categoria garantias iguais a de outros profissionais, mas foi aprovada somente neste ano.
Dimitri Dimoulis concorda com essa avaliação e destaca a dificuldade maior com que certos segmentos tenham seus direitos assegurados. Para o professor, a comunidade indígena está entre os grupos mais desprotegidos atualmente. Apesar de a Carta de 88 ter sido relevante por reconhecer o direito à terra e à preservação da cultura indígena, Dimoulis avalia que o texto vem encontrando dificuldades em ser colocado em prática.
“Antes da Constituição, os índios era ignorados. Houve inegáveis avanços, mas eles não se efetivaram por completo”, afirma Cléber Busatto, superintendente do Conselho Indigenista Missionário (Cimi). “São muito fortes os ataques de setores econômicos que têm interesse no acesso e exploração de territórios indígenas, incluindo áreas já demarcadas.”
Guacira Oliveira vê com preocupação o atual cenário dos direitos humanos. Para ela, a influência de setores econômicos e religiosos no sistema político podem interferir na elaboração de ações públicas e nas decisões dos agentes políticos. Como exemplo, lembra a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) em discussão no Congresso que quer transferir para o Legislativo a autonomia para demarcação de terras indígenas e de quilombolas, hoje sob responsabilidade do governo federal.
“A gente está num momento político em que os retrocessos ameaçam mais do que antes (do período da Constituinte). A agenda da igualdade está muito ameaçada”, afirma a socióloga.

Fiscalização avança, mas controle do Estado continua incompleto


Ministério Público forte é considerado o principal avanço; do papel de fiscal da lei passa, com a Carta, a fiscalizar os poderes

04 de outubro de 2013 | 22h 00

Fernando Gallo - O Estado de S. Paulo
Um Ministério Público fortalecido e com a prerrogativa legal de controlar o Estado, mas não inteiramente autônomo e a quem ainda falta uma melhor integração com outros órgãos de controle. Um controle interno vigoroso no Executivo federal e em alguns Estados, e com mais atenção também sobre a eficiência do gasto público, embora precário ou inexistente nos municípios e nos outros dois poderes. Um controle social ainda frágil, mas com expectativa de melhoras, a partir da Lei de Acesso à Informação e da capacitação de conselheiros.
Os 25 anos da Constituição brasileira de 1988 encontram os mecanismos de controle e fiscalização do Estado brasileiro bastante aprimorados, embora ainda incompletos. A percepção da corrupção, tema largamente presente nos protestos País afora, é maior hoje, avaliam especialistas, porque o combate aos malfeitos é mais eficaz. Eficácia, segundo eles, oriunda de dispositivos da Carta que permitiram melhor controle.
Quase unânime, o fortalecimento do Ministério Público é apontado como o principal avanço da Constituição em relação ao controle do Estado. Até 1988, o MP tinha o papel de fiscalizar a lei, mas com a Carta passa a fiscalizar os poderes. Ganha, constitucionalmente, a prerrogativa de promover o inquérito civil e a ação civil pública, de expedir notificações e controlar externamente a atividade policial. Com as mudanças, ganha importância institucional e, com a sua atuação a partir daí, vira referência da sociedade na fiscalização do Estado.
"O Ministério Público não perdeu a sintonia com a sociedade civil, e tem demonstrado boa capacidade de acionar em defesa da cidadania", diz o Procurador-geral de Justiça de São Paulo, Márcio Elias Rosa.
As Promotorias têm enfrentado como empecilho à conclusão dos trabalhos a morosidade da Justiça, decorrente da falta de uma reforma na legislação processual, com seus recursos infinitos, algo que não poderia ter sido contemplado na Constituição brasileira, por se tratar de legislação infraconstitucional. "A sensação de impunidade é alimentada pela incapacidade de agilizar o processo judicial", opina Elias Rosa.
Ele aponta a falta de autonomia orçamentária e também de uma cooperação mais efetiva como outros órgãos de controle como empecilhos para um combate mais eficaz contra a corrupção.
Quanto ao controle interno, a Carta atribuiu a cada poder a obrigação de se autofiscalizar, não apenas do ponto de vista da formalidade dos gastos, mas também da eficiência dos programas de governo, o que tem funcionado adequadamente no Executivo federal, mas precariamente nos outros poderes e nas demais esferas da federação.
"A Controladoria-Geral da União hoje é muito mais do que um órgão de controle interno. É praticamente uma agência anticorrupção", diz o controlador do Município de São Paulo, Mário Vinícius Spinelli. "Mas, quando se olha para Estados e municípios, a diferença é abissal", diz o ministro-chefe da CGU, Jorge Hage.
Os controladores defendem mudanças na Constituição. Uma das propostas é a PEC 45/2009, que disciplina e organiza o controle interno em quatro grandes funções - controladoria, ouvidoria, correição e auditoria governamental - e ainda cria carreiras específicas para o setor. "O controle interno é importante porque focamos muito no trabalho preventivo, que a gente entende que é muito mais efetivo feito a posteriori", diz a presidente do Conselho Nacional de Controle Interno, Ângela Silvares.
O controle social, dizem os especialistas, avançou pouco desde 88, mesmo com a criação, por exemplo, dos conselhos de educação, saúde e cultura. "Houve uma aposta frustrada de que o controle social por si só resolveria", diz Hage. "Controle social sem informação e sem capacitação dos conselheiros não funciona." Ele aposta em uma melhora do cenário com a Lei de Acesso a Informação e com um programa da CGU de capacitação dos conselheiros.

Sobre Deus, gameleira e a velha arte da negociação


04 de outubro de 2013 | 22h 00

João Domingos - O Estado de S. Paulo
A referência a Deus no preâmbulo da Constituição da República Federativa do Brasil foi uma das primeiras polêmicas registradas durante a realização da Assembleia Nacional Constituinte (1987-1988). Os deputados constituintes José Genoino (PT-SP) e Edmilson Valentim (PC do B-RJ) argumentavam que, sendo de todos os brasileiros, a Constituição não poderia abrigar a palavra "Deus", visto que o País também tem ateus. Veio a votação. Os favoráveis à expressão "sob a proteção de Deus" no preâmbulo da Carta venceram por larga margem.
Durante os quase dois anos de trabalho, a Constituinte foi tomada pelas mais variadas polêmicas, da função da propriedade privada ao conceito de democracia, de um sistema republicano à volta da monarquia.
Mas nem por isso os constituintes deixaram de buscar o entendimento, que sempre prevaleceu. Desse modo, a Constituição de 1988 foi escrita pelo consenso de deputados e senadores de centro-direita e de centro-esquerda que transformaram a negociação em sua profissão de fé, conseguindo com isso contentar de alguma forma os dois lados.
A Constituinte tinha pressa. Fora convocada pelo então presidente José Sarney, o primeiro civil a assumir a Presidência da República depois de 21 anos de ditadura militar (1964-1985) marcada pela suspensão de direitos políticos e do Estado de Direito, cassações de mandatos e outros arbítrios. "Vamos votar, vamos votar, meus amigos", era a frase repetida todos os dias pelo presidente da Constituinte, o deputado Ulysses Guimarães (PMDB-SP). Durante o período de votação, em 1988, os constituintes trabalhavam sábado e domingo. Negociavam e votavam. Votavam e negociavam.
A residência oficial do presidente da Câmara – cargo também ocupado por Ulysses Guimarães – transformou-se no ponto de encontro para as negociações entre os constituintes. Feitos os acordos, eles deixavam o local e iam para o plenário da Câmara votar. Uma imensa gameleira (árvore da família das moráceas) servia de abrigo para os repórteres que faziam plantão na frente da casa de Ulysses Guimarães. A árvore, com tronco de mais de três metros de diâmetro, continua no mesmo lugar, 25 anos depois.
A casa do presidente da Câmara também é a mesma. Fica na quadra mais valorizada do Lago Sul, em Brasília. Mas com raríssimas exceções, não é mais o local de reuniões importantes que podem decidir o futuro do País. Nem o Congresso atual faz política como se fazia durante a Constituinte, mesmo que as negociações também varem as madrugadas.
Hoje, boa parte de deputados e senadores aproveita as medidas provisórias editadas pelo governo para pegar uma carona e enfiar uma emenda que, não raro, serve a outros interesses e pode até causar um prejuízo irreparável ao País. Em alguns casos, são tantos os penduricalhos colocados numa MP que o Executivo se vê obrigado a vetar tudo.
Um exemplo recente ocorreu com a medida provisória que modernizou os portos e permitiu a entrada de novas empresas no setor. Uma emenda apresentada pelo líder do PMDB, Eduardo Cunha (RJ), conhecida por "Emenda Tio Patinhas", promovia a renovação automática das concessões dos terminais. Dilma foi obrigada a vetar essa parte.
Hoje votações importantes são sempre precedidas de ameaças por parte de congressistas, uma forma de fazer pressão sobre o Executivo para que o dinheiro das emendas parlamentares seja liberado. E o governo também faz a sua parte na chantagem. Costuma só liberar o dinheiro das emendas – que são legais, previstas no regimento e que levam pequenas obras para municípios distantes – se os deputados e senadores aprovarem a proposta de interesse do Executivo.
Pressão. Os movimentos sociais hoje têm ferramentas diversas para sua atuação. E fazem pressão sobre o Congresso, exigindo mais ética na política, como nas manifestações de junho. Esses grupos sociais começaram a se fortalecer durante a Constituinte. Eles participaram ativamente dos debates. Todos os dias eram encontrados no prédio da Câmara representantes de quilombolas, de sem-terra, de indígenas, de mulheres, de gays, de negros, e dos mais variados setores. Empresários, banqueiros, exportadores, funcionários públicos, militares, profissionais liberais, todo mundo era ouvido por deputados e senadores que não tinham distinção entre sim. Eram apenas constituintes.
Durante o primeiro ano de funcionamento da Constituinte, a centro-esquerda conseguiu ocupar os principais postos da Comissão de Sistematização, que a princípio teria o poder de redigir a Constituição. Percebendo que tinham levado uma rasteira, os parlamentares de centro-direita se organizaram – o que ficou conhecido por Centrão – e mudaram o regimento da Assembleia Constituinte. A Comissão de Sistematização perdeu o poder e coube ao plenário da Constituinte votar tudo o que consta da Constituição, sempre em dois turnos.
O Centrão, no entanto, tinha dentro de si um outro grupo, com cerca de 100 constituintes, que acabou sendo denominado de "centrinho". Eram parlamentares que ora votavam a favor de propostas de centro-direita, ora de centro-esquerda. Passou a ser tão importante que os dois lados não faziam nada sem verificar para que lado penderia o voto do "centrinho".
Havia ainda um pequeno grupo que votava contra tudo. Era constituído pelo deputado Luís Eduardo Magalhães (PFL-BA), que viria a ser presidente da Câmara e líder do governo de Fernando Henrique Cardoso, Oscar Correa Filho (PFL-MG) e Ronaro Correa (PFL-MG). Eles diziam que a Constituição, como estava sendo feita, enterraria o Brasil. Não votavam sim nem nas questões polêmicas nas quais tinham sido importantes para chegar a um consenso. Eles ficaram conhecido como grupo do "não".