segunda-feira, 23 de setembro de 2013

Aprender a política como festa - RENATO JANINE RIBEIRO


VALOR ECONÔMICO - 23/09
Um prefeito que tenha imaginação bem poderia entender que junho de 2013 deu uma grande lição aos governantes, e adotar uma medida inteligente: abrir, dois dias por ano, o espaço público para grandes manifestações políticas. Com data marcada, mas organizadas por entidades independentes ou, mesmo, não organizadas, só com algumas regras básicas de civilidade. Seria uma forma de dar vazão, propriamente política, a tudo o que é protesto ou projeto. Seria uma forma de aprendermos a traduzir em linguagem política nossos descontentamentos ou anseios. Seria uma forma de ocupar o espaço público, geralmente utilitário, como festa. Seria uma forma de aprendermos a fazer política como um espaço de prazer, de alegria - repito: de festa.

Porque este foi um dos lados das recentes manifestações. Em meio a dias de violência de manifestantes (numa primeira fase, mas sempre lembrando que a grande maioria deles foi comedida), um ou mais dias de violência policial (o fatídico 13 de junho, em São Paulo) e dias de violência contra prédios e militantes, houve a grande manifestação, absolutamente pacífica, também na capital paulista, do Largo da Batata. E outras, em outras cidades. A sensação de quem esteve é exultante. Os participantes a descrevem em linguagem que me levou a falar em epifania, em revelação. (Curiosamente, os amigos do Rede Sustentabilidade não gostam do termo; mas eu o mantenho). Porque se manifestava, a seus cinco sentidos, uma apropriação das ruas e avenidas pelo cidadão, melhor ainda, pelo ser humano; lá onde passam carros, ônibus e caminhões, lá onde há regras rígidas de circulação, lá onde a morte ronda constantemente sob a forma de atropelamentos e colisões, triunfou brevemente a lentidão do andar, o prazer do flanar, a alegria do encontrar.

Foram algumas janelas de vida feliz num mês ou dois que conheceram momentos de violência inaceitáveis. Para muitas pessoas, esse tipo de manifestação, que começa com o 1968 francês e irrompe de vez em quando mundo afora, sem causa determinada ou visível, deixa como único legado a festa. Pode ser pouco. Eu, pessoalmente, acho que só isso é pouco: quem bota o mundo de cabeça para baixo não deveria voltar, rápido demais, à rotina. Um carnaval pode fazer vislumbrar que outra experiência de vida pode existir. Mas é este momento "happening" que propicia a revelação. Se muitos apenas se divertem - se alguns até vivem esse dia como uma balada um pouco diferente - outros podem perceber, aí, que dá para reivindicar juntos. E isto é uma das coisas de que o Brasil mais precisa.

Porque nosso hábito é o da queixa individual, que nem chega a ser reclamação. Uma vez, quando um avião que seguia para São Paulo atrasou a ponto de ficar claro que pousaríamos em Guarulhos e não em Congonhas, vi uma fila de passageiros se queixar no balcão da companhia, mas sem unirem as vozes. Vários insultaram os funcionários - e depois, mansos, embarcaram para o aeroporto indesejado. Poucos anos depois, porém, outra experiência redimiu a primeira: vi uma moça reunir cinco ou seis dos passageiros, reclamar delicada mas firmemente com a companhia - e conseguir de volta a aeronave que estava sendo desviada para outro destino. A diferença está numa única palavra: organização. Incluí o depoimento dela, a médica Claudia Coutinho, no programa "A liberdade de organização", que fiz para a TV Futura.

Pode a organização nascer de uma festa? Pode. É preciso unir reclamações. Mas é necessário, sobretudo, sabermos que reclamações dão resultado, desde que feitas em conjunto. Quem se reúne tem mais êxito do que quem se divide. Nossa sociedade é individualista demais. Saber se unir é, para nós, prioridade. Nunca venceremos a corrupção enquistada nos castelos políticos se não desenharmos unidades alternativas a eles.

Agora, organizar em tom de festa é bom. É algo que o Brasil sabe fazer. Sempre se comenta que o carnaval, nossa festa com mais ares de bagunça, é na verdade um prodígio de organização. E no futebol, o esporte mais querido, o esporte que identificamos com a nacionalidade, os jogos começam na hora certa, sem atraso. Dá para misturar alegria e organização. Aliás, se pusermos alegria no convívio, no estar-juntos, teremos maior eficiência, que depende de sermos organizados. E, para completar, lembremos que os norte-americanos dizem "Let us get organized", Vamos nos organizar, quando querem dizer: este problema não pode ser resolvido por pessoas sozinhas, então nos juntaremos para enfrentá-lo.

Volto ao prefeito com imaginação. Uma festa das reivindicações, em que grupos grandes e sobretudo pequenos, até mesmo indivíduos, exponham suas críticas e propostas, ocupando avenidas ou praças da cidade - de qualquer cidade -, pode ser a ocasião de dar voz aos mil pequenos descontentamentos que nos acostumamos a calar. Dia a dia, engolimos frustrações com a baixa qualidade de nossa vida pública, de nossos serviços públicos. Não falar já é ruim. Não ver saída para problemas cruciais só agrava uma sorte de melancolia política que é nossa constante, com raros intervalos de euforia. Nós nos resignamos a muitos problemas, que achamos não terem como sair da vida pessoal e privada - e que são deprimentes. Mas eles podem ser enfrentados e até resolvidos, se soubermos transpô-los para a vida pública e política. É a esperança que o Brasil precisa construir: sair da passividade que nos isola a todos, para uma posição ativa que só existirá na cooperação de muitos. Esta proposta pode parecer ingênua e talvez o seja. Mas indica que podemos ter alegria numa política decente.

Não queremos saúde padrão Fifa - FRANCISCO BALESTRIN


Correio Braziliense - 23/09

Nos últimos meses, a população criou coragem e foi para as ruas exigir educação, uma política mais transparente e, principalmente, melhores condições de saúde. O descontentamento veio à tona especialmente com os altos investimentos para a Copa do Mundo de 2014, frente às mazelas do país. Entre as reivindicações, a saúde com padrão Fifa é um dos principais discursos. Mas a verdade é que não precisamos de saúde padrão Fifa, com investimentos estrondosos e construções exageradas, mas sim de uma saúde padrão Brasil, que atenda as necessidades da população.

O sistema público de saúde já possui grandes hospitais e o Brasil é o único país dos Brics (Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul) com um modelo de saúde pública que é bastante elogiado, mas peca na execução. O setor privado, por sua vez, possui uma gestão bastante eficiente, mas não tem modelo definido. Os serviços de saúde precisam, de fato, melhorar; no entanto, investimentos desnecessários não resolverão os problemas de gestão da saúde no país.

A saúde precisa ser vista pelos governantes como um bem maior, que necessita de investimentos na mesma proporção de se implantar uma gestão inteligente. Mas não vemos isso na prática. Uma breve análise comparativa entre os gastos com a Copa do Mundo e os investimentos previstos para a saúde demonstra o quanto essa área vital carece de atenção no país. O objetivo desta reflexão não é criticar os gastos com a Copa, mas mostrar a ineficiência da gestão pública e a inversão de valores dos governantes.

Os investimentos previstos para a Copa são da ordem de R$ 26 bilhões. Obviamente, se acompanharmos os noticiários, perceberemos que esse valor foi ultrapassado em muito. Apenas os seis estádios utilizados na Copa das Confederações, por exemplo, custaram 65% mais que o previsto em 2010.

Enquanto isso, entre 2007 e 2012, o Brasil perdeu 11,2% dos leitos privados do país, o que corresponde a 18.322 leitos. No mesmo período, mais de 280 hospitais privados foram fechados. Nesse sentido, é importante lembrar que 64% dos leitos disponíveis pertencem aos hospitais privados e mais de 57% desses leitos atendem ao Sistema Único de Saúde (SUS), o que sobrecarrega ainda mais o setor. Além disso, o número de beneficiários de planos privados é crescente, alcançando 47,9 milhões de favorecidos, um crescimento de 2,1% em 2012.

Ao analisarmos os investimentos para a Copa do Mundo de 2014, verificamos que apenas com a construção e reforma de 12 estádios estão previstos gastos de mais de R$ 7 bilhões. Em nota técnica publicada pela Associação Nacional de Hospitais Privados (Anahp), se considerarmos o crescimento médio de beneficiários de 2,1% ao ano, o segmento hospitalar privado precisará criar 13,7 mil novos leitos até 2016, sem considerar o deficit atual de leitos. Esse número equivale ao investimento de R$ 4,3 bilhões, ou seja, valor muito inferior ao gasto com os estádios. O setor público seguramente deve apresentar números maiores.

Os gastos com saúde no Brasil representam 9% do Produto Interno Bruto (PIB), o equivalente a R$ 396,7 bilhões, sendo a maior parte (57%) de origem privada, tanto por meio de planos de saúde quanto por gastos diretos dos cidadãos brasileiros. O governo federal destinou algo em torno de R$ 96 bilhões para a saúde em 2012, mas há notícias de que mais de R$ 9 bilhões deixaram de ser investidos. Esse recurso é quase equivalente ao total de gastos com internações do SUS no mesmo ano (R$ 11,6 bilhões). Com a disponibilidade e utilização adequada desse montante, poderíamos aumentar em mais de 90% os recursos para internação no sistema público de saúde.

Como parte de um pacto pela melhoria dos serviços públicos, a presidente Dilma apresentou algumas propostas, contemplando o combate à corrupção e a melhoria do atendimento à população nas áreas de saúde, educação e transporte público. O curioso é que, ao mesmo tempo em que o governo promete melhorar as condições dos serviços públicos no país, ele também se compromete a reduzir gastos e a atingir a meta de superavit, de 2,3%. O que nos resta saber é de onde esses gastos serão cortados.

Para a saúde, por exemplo, apesar de importantes, as alternativas propostas não solucionam um dos principais problemas do setor público — o de gestão do sistema. De nada adiantam novos hospitais e unidades básicas, se não houver qualidade e segurança na prestação dos serviços.

Aliás, atendimento de qualidade é direito do cidadão e deve ser entendido como essencial à condição humana. O sistema privado de saúde também deve resgatar sua condição existencial, voltando a ser opção do usuário e não condição para receber os cuidados de saúde que deveriam ser ofertados pelo SUS. Portanto, a gestão competente do sistema público é fundamental nesse processo, pois a ineficiência da saúde pública sobrecarrega e prejudica o todo.

Os contrapontos desse artigo mostram a urgência de investimentos para a saúde e, principalmente, a necessidade de uma gestão mais adequada do dinheiro público, requisito fundamental para o desenvolvimento do país.

Orçamento cada vez mais rígido - BERNARD APPY


O ESTADO DE S. PAULO - 22/09

Nos últimos meses uma série de projetos voltados a ampliar a vinculação de recursos para áreas sociais foi aprovada ouvem sendo discutida no Congresso Nacional. Um exemplo é a Lei n.° 12.858, sancionada no dia 9 deste mês, que destina à educação (75%) e à saúde (25%) a totalidade das receitas dos royalties do petróleo relativas a contratos celebrados a partir de 3 de dezembro de 2012, bem como destina à educação 50% dos recursos do Fundo Social (fundo formado para receber todos os recursos obtidos pela União com a exploração do petróleo no pré-sal).

Embora à primeira vista essa medida pareça positiva - afinal, quem é contra a ampliação de recursos para a educação e para a saúde?ela é o resultado de um modelo extremamente problemático de definição de prioridades para as despesas públicas no Brasil. Esse modelo consiste na vinculação de um montante cada vez maior de recursos a determinadas categorias de despesas, sem uma discussão minimamente adequada sobre como essa vinculação afeta as demais despesas, a carga tributária e a dívida pública do País.

Vou me explicar melhor. À primeira vista, o aumento das despesas sociais decorrentes da Lei n.° 12.858 tem uma fonte de recursos, que são os royalties do petróleo dos novos contratos. Em nenhum momento se discutiu, 110 entanto, o que se está deixando de fazer por conta dessa vinculação.

De fato, os royalties dos novos contratos tendem a substituir, progressivamente, as receitas resultantes dos contratos antigos, que tendem a se reduzir à medida que a produção dos poços antigos vai se esgotando. Como já existem despesas que hoje são financiadas com os royalties, ao vincular a totalidade dos novos recursos à educação e à saúde, a Lei n.° 12.858 está retirando a fonte de financiamento das demais despesas que hoje são cobertas com recursos do petróleo - tanto na União quanto nos Estados e municípios.

Ao perder a fonte de financiamento destas demais despesas, os governos têm três alternativas possíveis: ou cortam essas despesas ou aumentam a carga tributária ou a dívida pública para manter as despesas.

Este c o ponto que eu gostaria de destacar. O modelo vigente no Brasil de vinculação de recursos para determinadas categorias de despesas olha apenas para um lado da moeda, que é o do gasto que se quer privilegiar, mas não olha para o outro lado da moeda, que é o que se está deixando de fazer.

É importante ter em conta que a Lei n.° 12.858 não é um caso isolado. Além de a Constituição federal á determinar a destinação à educação de 18% da receita de impostos da União (líquida de transferências) e de 25% da receita de impostos (acrescida de transferências) dos Estados e municípios, nos últimos 15 anos várias medidas de vinculação de recursos à saúde e à educação foram adotadas.

Uma dessas medidas é a Emenda Constitucional 29, de 2000, que determinou a vinculação de 12% da receita liquidada impostos dos Estados (acrescida de transferências) à saúde, porcentual que sobe para 15% no caso dos municípios, e estabeleceu que as despesas da União com saúde serão corrigidas anualmente com base na variação do PIB. Outra medida é a Lei n.° 11.494, de 2007, que estabeleceu que pelo menos 70% das transferências da União para o Fundo de Desenvolvimento da Educação Básica (FUNDEB) serão financiadas com recursos adicionais a vinculação constitucional de 18% dos impostos.

Não pretendo, neste artigo, discutir se o nível de gastos em educação e saúde no Brasil é adequado (sobre as despesas com educação, recomendo a leitura de três textos do início de setembro 110 blog de Mansueto Almeida -http://mansueto.wordpress.com). Em todo caso, vale destacar que, para vários analistas, antes de aumentar a despesa com educação e saúde, seria preciso tomar medidas voltadas para melhorar a gestão e aumentar a eficiência dos gastos já existentes.

O que me preocupa é a crescente rigidez do Orçamento público. Ao decidir vincular os recursos do petróleo à educação e à saúde, o legislador de hoje está reduzindo o espaço que o legislador de amanhã terá na definição de prioridades.

Esse enrijecimento do Orçamento no longo prazo não é acompanhado de qualquer discussão sobre as alternativas de utilização dos recursos. Não se discute, por exemplo, se há carências mais importantes e urgentes em outros setores, como segurança pública, transporte público ou infraestrutura. Tampouco se avalia se o aumento das receitas do petróleo poderia ser utilizado para viabilizar a redução da carga tributária de outros setores da economia.

O pior é que o Orçamento no Brasil já é extremamente rígido. Para além dos recursos vinculados, há um grande conjunto de despesas que não podem ser reduzidas no curto prazo - como benefícios previdenciários e assistenciais e os gastos com pessoal. O resultado é que a parcela do Orçamento que pode ser gerida pelos governos - como investimentos ou gastos em setores não protegidos por vinculações - é extremamente reduzida. Não é por outro motivo que o Brasil tem uma carga tributária de mais de 35% do PIB e aloca em investimentos públicos (nos três níveis de governo) menos de 3% do PIB.

Em razão dessa alta rigidez do Orçamento, quando se faz necessário algum ajuste nas contas públicas, o que resta ao governo é cortar investimentos ou elevar a carga tributária. Esse tipo de ajuste cobra seu preço na forma de um menor crescimento do País no longo prazo, o que, em última instância, acaba reduzindo inclusive os recursos destinados à saúde eà educação.

Em suma, ainda que despesas em saúde e educação sejam importantes, o aumento da vinculação de recursos a esses setores (ou a qualquer outro setor) não é a solução para o problema.

Finalizo informando que escreverei nesta coluna a cada cinco semanas. Retomarei o tema em meu próximo artigo, com a apresentação de algumas sugestões.