sexta-feira, 10 de setembro de 2010

Como se vai às urnas de lenço no nariz


27 de agosto de 2010 | 10h 19
Marcos Sá Corrêa - O Estado de S. Paulo
Se há uma coisa que não está acontecendo pela primeira vez na história do País é essa mistura de ar seco, horizonte encardido e céu opaco que marca mais uma estiagem como a hora tradicional de botar fogo no mato.
Disso o entomólogo alemão Hermann von Burmeister se queixou há uns 200 anos, em suas viagens de pesquisa pelo interior do Brasil, onde “tamanha era a quantidade de fumaça que, durante dias ou mesmo meses, o Sol ofusca quase totalmente oculto e, se o vemos, ele é vermelho”.
É a mesma fumaça que nos amplia o entardecer com um festival de panoramas alaranjados, para alegria dos fotógrafos. Burmeister, mais crítico, vaiou o espetáculo, resmungando contra esse efeito especial equivalente a enxergar o mundo “através de um vidro enegrecido”, sem contar que, nessas ocasiões, a atmosfera dos trópicos ardia nos olhos, irritava as narinas e inflamava os pulmões.
O que ele viu foi o Brasil crescendo do jeito que sabe. No caso, estava diante de Burmeister a prosperidade do café no Vale do Paraíba, derrubando as florestas para abrir alas a uma festa que durou uma geração, deixando de herança barões falidos, casarões em ruínas e um mar de morros carcomidos que a posteridade até hoje não sabe como consertar.
Nisso, o Brasil está cansado de ter história. O que 2010 registra pela primeira vez nos anais da imprevidência política no País é o encontro das queimadas com uma campanha presidencial em que pelo menos uma candidata, Marina Silva (PV), tenta, em vão, discutir se é isso mesmo que os brasileiros querem daqui para a frente.
Pelo visto, sim. É pelo menos o que as pesquisas andam dizendo. Pobre Marina. Mais sufocante que o ar poluído e seco, só uma eleição conservada em índices tóxicos de pasmaceira conformista. O Brasil vai às urnas em um dos piores ciclos de seu desastroso currículo ambiental. E não está nem aí para isso.
Aos inconformados, como Sérgio Leitão, do Greenpeace, resta apontar a revoada de sinais agourentos em direção a caminhos sem saída. Este foi o ano em que o Código Florestal caiu em desuso, entregue a um Congresso que só ouvia a voz dos pequenos, médios, grandes e enormes agricultores, todos alegando que não dá para sobreviver no campo sem enterrá-lo.
A reforma sequer acabou. E o triunfo do fogo sobre o código mostra em que deu o movimento nacional para malhá-lo ainda em vida.
Na Amazônia, o Imazon contabilizou 37 propostas simultâneas de madeireiros, mineradores, pecuaristas e grileiros em geral para avançar sobre 48 áreas protegidas na região. São quase 50 mil quilômetros quadrados de florestas nesse butim.
Na Bahia, a Bamin, um consórcio de indianos e cazaques, acaba de derrubar os entraves legais ao Porto Sul, um terminal de exportação de minério a se erguer no último trecho do litoral onde a legítima terra do Descobrimento – ou seja, a paisagem original descrita na carta de Caminha – tinha chance de progredir economicamente sem pisar nas próprias cinzas.
Os parques nacionais estão sob ataque na Justiça. O Jardim Botânico acaba de ser deserdado no Rio de Janeiro pela Secretaria do Patrimônio da União, que prefere deixar invasores aboletados no arboreto a reaver seu primeiro laboratório ao ar livre de pesquisa aplicada à conservação.
Isso, claro, numa terra que precisa como nunca formar especialistas em manejo de florestas nativas.
Futuro desolador
E lá vamos nós. Estamos prontos para cutucar o pré-sal com canos enferrujados. Temos cada vez mais projetos de hidrelétricas em bacias fluviais sujeitas a reviravoltas climáticas. Perdemos um século culpando os ingleses que levaram nossos seringais para a Malásia.
E nem notamos que, hoje, o tambaqui da Amazônia já se mudou para a China, que aprendeu antes de nós a cultivá-lo em cativeiro.
Aliás, o Peru é o maior exportador mundial de castanha-do-pará. Aquela que, lá fora, é chamada de “Brazil's nuts”.
Mas nada disso tem a ver com eleição presidencial, não é mesmo?

Uma palavra vale mais que mil palavras




10 de setembro de 2010 | 0h 00
Marcos Sá Corrêa - O Estado de S.Paulo
Sombrio como um túnel de árvores e manso como um igarapé, o Iguaçu nem parece o rio que dali a pouco vai despencar em mais de 200 cachoeiras, por quase três quilômetros de precipícios cavados a prumo no basalto.
Sob as copas, o bote inflável desce devagar. E, menos para empurrá-lo rio abaixo que para manter a sensação de imobilidade, o guia move os remos com a pachorra de quem sabe que, por baixo da superfície mansa e espelhada, a lenta correnteza nos deixará sem falta no porto, antes das corredeiras e quedas.
Ele tem traços indígenas. E se sente notoriamente em casa. Para ele, tudo ao seu redor conserva, ali na margem argentina, o nome que lhe deram os guaranis. E assim ele chama em voz baixa, quase falando sozinho, os yaguás-pindás, guembés, jotes, ñanguapiris ou comadrejas do caminho.
Está falando de trepadeiras, epífitas, urubus e roedores que ali existem - iguaizinhos aos do outro lado, o brasileiro. Mas, assim em guarani, a fauna e a flora soam como invocações de uma floresta mítica, a que existiu ali antes que as últimas sobras da mata nativa se enquadrassem nos estritos limites de dois parques nacionais, entre cidades e fazendas, no trecho final do Iguaçu. São molduras das cataratas.
Antes de chegar a esse ponto, o Iguaçu atravessa mil e tantos quilômetros de afluentes barrentos, comportas de hidrelétricas e bocas de esgoto. Nem parece. Na margem argentina, a curva do rio espalha o leito pela terra adentro, cavando um labirinto meio amazônico de braços, ilhas e praias. O rio passaria por selvagem se as grandes cheias deste ano não tivessem pendurado nos galhos, agora fora do alcance dos mutirões de limpeza, sacos de plástico e tiras de pano, balançando como fantasmas da poluição industrial.
Foi lá que o guia usou, na descrição da paisagem, uma palavra mais ou menos universal: "meandro". Talvez por falta de equivalente em guarani. E, sem saber, citando um clássico do desmatamento. Meandro era, antes de se transformar em substantivo comum, um rio da Anatólia, na Ásia Menor.
Banhou, até cerca de 200 a.C., um berço da civilização. Na bacia do Meandro, os gregos reencontraram os recursos naturais exauridos a oeste pelo apogeu da Idade do Bronze no Mediterrâneo. Era um território de montanhas e florestas. Virou uma região de campos e trigais.
Em aproximadamente 500 anos - ou seja, a idade do Brasil -, o machado e o fogo acabaram com as florestas do Meandro. A fertilidade do solo diminuiu. E o arado colaborou com as enxurradas para levar a terra ao curso do rio.
Tanto sedimento caiu no Meandro que os agricultores, quando perdiam suas propriedades pela erosão, podiam legalmente processar o rio. Pelo menos segundo Strabo, filósofo, geógrafo e incansável andarilho do mundo antigo, que morreu há quase 2 mil anos. John Perlin, historiador contemporâneo, diz coisa pior em A Forest Journey, livro escrito em 1989 e atualizado em 2005.
"No século 5 a.C.", conta Perlin, "o que hoje é o baixo vale do Meandro foi mar aberto". Mios, o porto marítimo da época, fica agora a 25 quilômetros do litoral. Engolido por pântanos, acabou colonizado por mosquitos. E os mosquitos derrotaram os gregos da Anatólia a golpes de malária. É daí que vem "meandro". A palavra pegou. Continua tão viva que está na boca do guia guarani no Iguaçu. Só o seu significado ambiental o mundo fez questão de esquecer. 


quinta-feira, 9 de setembro de 2010

Assessor de imprensa é jornalista?


09 de setembro de 2010 | 0h 00
Eugênio Bucci - O Estado de S.Paulo
Tramita no Senado a Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 33/09, que restabelece a exigência de diploma em Comunicação Social, com habilitação em jornalismo, para o exercício da profissão de jornalista. Essa PEC surgiu no final do ano passado, logo após a decisão do Supremo Tribunal Federal que derrubou a obrigatoriedade do diploma, por entendê-la inconstitucional. O raciocínio que a inspira é bem simples: se a exigência do diploma era inconstitucional, basta, agora, inscrevê-la na própria Constituição e, assim, sua inconstitucionalidade cessará. Para tanto ela modifica o artigo 220 para fazer constar da Lei Maior o diploma obrigatório. Em tempo: a emenda já passou pela Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania do Senado Federal e agora, para seguir em frente, depende da decisão do plenário.
Se aprovada a PEC, o diploma não será apenas obrigatório como era antes: ele será constitucionalmente obrigatório. Mas será que isso resolverá as indefinições que pesam sobre a profissão de jornalista? A resposta é não. A exigência ou a não exigência do diploma é um tópico secundário. O ponto mais grave, hoje como antes, é a definição desse ofício: em que consiste a profissão de jornalista? O diploma será obrigatório para o sujeito fazer exatamente o quê? Esse "o quê" é o ponto central.
Quanto a isso persiste uma confusão que compromete todo o resto. Ainda se acredita no Brasil que jornalistas e assessores de imprensa desempenham uma única profissão. Isso não faz sentido algum, nem aqui nem em nenhum outro lugar do mundo. Desconheço países de boa tradição democrática onde jornalistas se vejam como assessores de imprensa ou vice-versa. Ambas as atividades são essenciais e dignas, por certo, mas totalmente distintas uma da outra. No Brasil, no entanto, são vistas por muita gente como se fossem uma coisa só. Por que fomos cair nessa confusão?
A origem de tal embaralhamento vem da nossa cultura sindical. Como, historicamente, muitos jornalistas profissionais foram migrando, aos poucos, para as assessorias de imprensa, os sindicatos de jornalistas passaram a ter, entre seus associados, contingentes cada vez maiores de assessores. Para não perderem filiados esses sindicatos começaram a representar, de uma vez só, uns e outros. Nasceu assim uma teoria corporativista segundo a qual tanto os repórteres como os assessores de imprensa praticam "jornalismo". Nada mais falso - e nada mais pernicioso para a compreensão do que significa a independência editorial como primeiro dever de todo jornalista. Se um assessor de imprensa é jornalista, a independência editorial deixou de ser um requisito para definição dessa profissão. De acordo com essa novíssima semântica, uma redação não precisa ser independente para realizar a função de imprensa.
Essa teoria se expressa de modo escancarado no Código de Ética dos Jornalistas Brasileiros, da Federação Nacional dos Jornalistas (Fenaj). Venho sustentando há vários anos - e venho sustentando isso dentro da Fenaj, à qual sou filiado - que o nosso código está assentado sobre um conflito de interesses insolúvel. Dou aqui apenas dois sintomas desse conflito que o código não consegue - por mais que tente - ocultar.
O artigo 7.º, inciso VI, diz que "o jornalista não pode realizar cobertura jornalística para o meio de comunicação em que trabalha sobre organizações públicas, privadas ou não governamentais, da qual seja assessor, empregado, prestador de serviço ou proprietário (...)". Note bem o leitor: o Código de Ética dos Jornalistas Brasileiros proíbe que, como repórter contratado de algum jornal, o jornalista escreva sobre o órgão em que também seja contratado como assessor, mas, e aí está o dado espantoso, o mesmo código admite que o jornalista mantenha duplo emprego, podendo ser repórter num jornal e assessor de imprensa num órgão público, ao mesmo tempo, como se isso fosse normal num regime de imprensa independente.
O outro sintoma: o artigo 12 afirma que "o jornalista deve, ressalvadas as especificidades da assessoria de imprensa, ouvir sempre, antes da divulgação dos fatos, o maior número de pessoas e instituições envolvidas em uma cobertura jornalística". Nesse artigo o código confessa que a ética jornalística não vale sempre, do mesmo modo, para os assessores: os primeiros têm o dever de ouvir todos os envolvidos numa história; os segundos, não. Mesmo assim, a despeito dessa franca distinção, o código pretende valer para ambos os profissionais.
Vale repetir: o Código de Ética dos Jornalistas Brasileiros está assentado sobre um conflito de interesses. A Fenaj, a maior defensora da PEC 33/09, chama assessoria de imprensa de jornalismo. Sintomaticamente, outra vez, a Justificação da PEC, assinada pelo senador Antônio Carlos Valadares (PSB-SE), embarca na mesma lógica e corrobora a teoria de que o ofício da imprensa se estende por várias funções, "do pauteiro ao repórter, do editor ao planejador gráfico, do assessor de imprensa ao fotojornalista". Segundo essa lógica, enfim, a assessoria de imprensa, assim como o fotojornalismo ou o planejamento gráfico, é função jornalística.
O maior dano causado por essa teoria é a diluição do conceito de imprensa independente. Essa lógica não realça a função social de fiscalizar o poder que só o jornalismo independente pode realizar. Jornalistas trabalham para que as perguntas que todo cidadão tem o direito de fazer sejam respondidas, enquanto assessores trabalham para que as mensagens que seus empregadores ou clientes gostariam de difundir sejam divulgadas. Essa distinção deveria ser explícita dentro da própria Fenaj e dentro do Congresso Nacional. Aí, sim, saberíamos com segurança para que atividades a Constituição passará a impor o diploma obrigatório.
JORNALISTA, É PROFESSOR DA ECA-USP