10 de setembro de 2010 | 0h 00
Marcos Sá Corrêa - O Estado de S.Paulo
Sombrio como um túnel de árvores e manso como um igarapé, o Iguaçu nem parece o rio que dali a pouco vai despencar em mais de 200 cachoeiras, por quase três quilômetros de precipícios cavados a prumo no basalto.
Sob as copas, o bote inflável desce devagar. E, menos para empurrá-lo rio abaixo que para manter a sensação de imobilidade, o guia move os remos com a pachorra de quem sabe que, por baixo da superfície mansa e espelhada, a lenta correnteza nos deixará sem falta no porto, antes das corredeiras e quedas.
Ele tem traços indígenas. E se sente notoriamente em casa. Para ele, tudo ao seu redor conserva, ali na margem argentina, o nome que lhe deram os guaranis. E assim ele chama em voz baixa, quase falando sozinho, os yaguás-pindás, guembés, jotes, ñanguapiris ou comadrejas do caminho.
Está falando de trepadeiras, epífitas, urubus e roedores que ali existem - iguaizinhos aos do outro lado, o brasileiro. Mas, assim em guarani, a fauna e a flora soam como invocações de uma floresta mítica, a que existiu ali antes que as últimas sobras da mata nativa se enquadrassem nos estritos limites de dois parques nacionais, entre cidades e fazendas, no trecho final do Iguaçu. São molduras das cataratas.
Antes de chegar a esse ponto, o Iguaçu atravessa mil e tantos quilômetros de afluentes barrentos, comportas de hidrelétricas e bocas de esgoto. Nem parece. Na margem argentina, a curva do rio espalha o leito pela terra adentro, cavando um labirinto meio amazônico de braços, ilhas e praias. O rio passaria por selvagem se as grandes cheias deste ano não tivessem pendurado nos galhos, agora fora do alcance dos mutirões de limpeza, sacos de plástico e tiras de pano, balançando como fantasmas da poluição industrial.
Foi lá que o guia usou, na descrição da paisagem, uma palavra mais ou menos universal: "meandro". Talvez por falta de equivalente em guarani. E, sem saber, citando um clássico do desmatamento. Meandro era, antes de se transformar em substantivo comum, um rio da Anatólia, na Ásia Menor.
Banhou, até cerca de 200 a.C., um berço da civilização. Na bacia do Meandro, os gregos reencontraram os recursos naturais exauridos a oeste pelo apogeu da Idade do Bronze no Mediterrâneo. Era um território de montanhas e florestas. Virou uma região de campos e trigais.
Em aproximadamente 500 anos - ou seja, a idade do Brasil -, o machado e o fogo acabaram com as florestas do Meandro. A fertilidade do solo diminuiu. E o arado colaborou com as enxurradas para levar a terra ao curso do rio.
Tanto sedimento caiu no Meandro que os agricultores, quando perdiam suas propriedades pela erosão, podiam legalmente processar o rio. Pelo menos segundo Strabo, filósofo, geógrafo e incansável andarilho do mundo antigo, que morreu há quase 2 mil anos. John Perlin, historiador contemporâneo, diz coisa pior em A Forest Journey, livro escrito em 1989 e atualizado em 2005.
"No século 5 a.C.", conta Perlin, "o que hoje é o baixo vale do Meandro foi mar aberto". Mios, o porto marítimo da época, fica agora a 25 quilômetros do litoral. Engolido por pântanos, acabou colonizado por mosquitos. E os mosquitos derrotaram os gregos da Anatólia a golpes de malária. É daí que vem "meandro". A palavra pegou. Continua tão viva que está na boca do guia guarani no Iguaçu. Só o seu significado ambiental o mundo fez questão de esquecer.
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