É difícil conceber hoje um movimento político que não recorra à ideia de pertencimento. Vem daí a obsessão pela origem, pela filiação a uma suposta matriz, como justificativa tanto para a resistência de grupos oprimidos, perseguidos e silenciados, como para os nacionalismos e o racismo dos opressores.
Um pequeno ensaio que acaba de sair pela Quina Editora defende, entretanto, na esteira da psicanálise lacaniana, que toda origem é ficção, estratégia retrospectiva. O pertencimento é uma armadilha.
Em "A Nostalgia", a filósofa e filóloga francesa Barbara Cassin busca nos conduzir, a partir do que há de comum na experiência de Ulisses na "Odisseia", de Eneias na "Eneida" e de Hannah Arendt no exílio, a "um pensamento mais amplo, mais acolhedor, [...] uma visão do mundo livre de todos os pertencimentos".
Ulisses não passa mais de uma noite em casa depois de voltar de sua Odisseia, porque esta só se realiza realmente onde e quando ele já não for reconhecido, longe de casa, na estranheza e na alteridade (Canto 23). A casa de Ulisses é a errância. Dante o situa no Inferno, não no Paraíso.
A experiência de Eneias é análoga. Para refundar Troia destruída (em Roma), o exilado que traz a pátria nas costas abandona o grego da origem e se apropria do latim: "É com a língua do outro que se faz uma nova pátria".
O exilado-fundador da civilização latina é um estrangeiro. "O exílio é um retorno para a origem, pois a origem não é aquela que se acreditava. [...] O fim do exílio, a instalação-fundação, é uma mestiçagem desejada e feliz." A experiência de Eneias lembra que somos todos exilados: "Nenhuma parcela da humanidade permaneceu no lugar de sua origem".
O problema está em confundir o político com a essência. É o dilema da identidade. E é aí que entra a experiência de Hannah Arendt com o alemão, língua ao mesmo tempo materna e que não lhe pertence, associada ao oficialês nacional-socialista.
O que sobra da experiência do exílio é a língua da criação. "O pertencimento a um grupo é ‘de início um fato natural: você sempre pertence a um grupo qualquer pelo seu nascimento'", Cassin cita Arendt. "Mas é desastroso confundir isso com o pertencimento a um grupo 'no segundo sentido', a um grupo organizado, político, em uma relação com o mundo com interesses comuns. [...] 'O inconformismo é a condição sine qua non da realização intelectual'".
O exílio desnaturaliza a língua materna. No exílio, o alemão passa a ser para Arendt a língua da diferença, na qual ela tem a capacidade e o direito de inventar, em oposição à banalidade dos clichês, da comunicação de massa e da propaganda nazista. E em oposição também a uma compreensão ontológica da língua, que vai permitir uma espécie de nazismo linguístico ao associar o alemão ao grego em uma suposta superioridade lexical e filosófica.
A lição dessas três experiências é que, para voltar à casa, é preciso ir ao outro, ao contrário da casa. O sentido da política é o contrário da ontologia.
Em vez de enraizar-se, Cassin propõe "raízes aéreas". Uma língua não é um povo, mas uma pluralidade separada do solo e da origem. Língua de invenção, de singularidade e diferença (daí o elogio da tradução contra uma língua única, pasteurizada, de comunicação global). E citando Arendt: "O que é a política? 1. A política repousa sobre um fato: a pluralidade humana. Deus criou o homem, os homens são um produto humano [...] 2. A política trata da comunidade e da reciprocidade de seres diferentes".
Não é fortuito que, sob a égide do pertencimento e da origem, a ficção acabe rebaixada a mentira, fake news etc. Ela é o avesso disso. Na ficção não pode haver mentira, porque tampouco há pretensão à verdade, embora ela realize a verdade do eu no outro.
A ficção é a língua da errância, do exílio, da pluralidade, do pensamento e da imaginação, das raízes aéreas. Não é a língua de Deus. É a língua dos homens.
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