Paris nos recebe de braços abertos, e a anfitriã é a jornalista e tradutora Rosa Freire d’Aguiar, que acaba de publicar "Sempre Paris", no qual relata sua vida como correspondente de grandes jornais e revistas brasileiros na capital francesa nas décadas de 1970 e 1980.
Nessas suculentas memórias, a autora cede o protagonismo a escritores, artistas e intelectuais com os quais teve o privilégio de dialogar, embora também comente com suas próprias palavras temas centrais da época, que se repetem hoje, como, por exemplo, o eterno conflito na Faixa de Gaza.
Freire d’Aguiar recorda sua primeira viagem à região em 1982, a partir de Paris, quando "a política de colonização israelense causava outros dramas nos territórios ocupados, onde desde 1967 os governos –fossem quais fossem– exasperavam a vida dos palestinos".
"Em Rafá, no sul da Faixa de Gaza, encontrei a menininha Rollah, de três anos, que desaprendera a falar e só repetia alhudud —fronteira— desde que os israelenses tinham fincado diante de sua casa uma cerca de arame farpado de dois metros de altura", escreve.
Interessante pensar que "Sempre Paris" foi impresso um mês antes do início de um novo conflito na região. Lendo os relatos e entrevistas do livro, tem-se a impressão de que ao longo desses anos não saímos do lugar ou, pior, regredimos.
"Sempre Paris" narra vários acontecimentos importantes da história recente, que continuam cruciais. Em 1981, a jornalista entrevistou o escritor argentino Ernesto Sabato, que, ao ser perguntado se a omissão e o escapismo da geração dele não teriam contribuído para a situação do país, respondeu afirmativamente.
E complementou: "É certo que na Argentina chegamos a este ponto porque muitos homens eminentes se negaram a participar da vida política. Era tradicional, na Argentina como em muitos outros países, a ideia de que a política é suja. A política é real, e a realidade é suja. Só o mundo platônico é limpo".
O escritor acreditava, contudo, que a Argentina estava farta dos militares. Mas nem 50 anos se passaram e os argentinos defendem hoje a ideia de que só alguém afastado da política poderá salvar o país. Parecem ter esquecido também os desaparecidos e da supressão das garantias constitucionais ao elegerem como presidente Javier Milei.
A respeito do mundo literário, Freire d’Aguiar conta que, quando chegou a Paris, editavam-se ali "nada menos que 150 suplementos e revistas literárias", que ela tentava acompanhar. Entrevistou celebridades desse universo, como Roland Barthes, Eugène Ionesco e Michel Serres, entre outros nomes que conhecemos ainda hoje. Algumas entrevistas são inéditas, outras foram publicadas à época no Brasil.
Na entrevista com Ionesco, a morte e a velhice ganham destaque. Para o dramaturgo, os últimos anos de vida são os mais irritantes, pois "você já sabe tudo o que poderia saber, ou seja, nada sabe e não saberá mais nada". "É terrível, é inadmissível. E você continua vivo, você não quer ir embora."
O tema parece estar em voga na literatura contemporânea brasileira, mas talvez sem a profundidade e o humor característico de Ionesco.
Duas mulheres entrevistadas pela autora chamam a atenção. Élisabeth Badinter, "voz atuante no feminismo dos anos 1960", provocou furor ao colocar em xeque a naturalidade do amor materno —mais um tema, vale destacar, que retornou em escritos contemporâneos como algo completamente novo e original. A outra é Simone Veil, que, nos anos 1970, foi ministra da Saúde na França e lutou pela legalização do aborto e por outras causas que garantissem a liberdade feminina.
"Sempre Paris" confirma na prática a teoria do filósofo italiano Giambattista Vico: a história é circular e espiral —circular porque sempre se repete e espiral porque nunca se repete inteiramente da mesma forma. Ao final da leitura, o advérbio "sempre" do título fica parecendo viconiano
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