sexta-feira, 5 de janeiro de 2024

João Pereira Coutinho - Na luta contra o racismo, são por vezes os 'ativistas' que a sujam para se salvar, FSP

Sempre gostei do verbo desconversar. Aplicado em contexto político ou cultural, significa corromper uma discussão pelo uso de argumentos laterais, estados de alma, puras exibições de má-fé.

Desconversar é sabotar: quando a evidência e os fatos destroem uma boa narrativa, o melhor é mudar de assunto para matar o assunto principal.

Claudine Gay, ex-reitora da Universidade Harvard, em audiência do Comitê de Educação e Força de Trabalho da Câmara, em Washington - Ken Cedeno - 5.dez.23/Reuters

Um caso extremo dessa arte encontra-se na carta que Claudine Gay publicou no New York Times para justificar a sua renúncia ao cargo de reitora de Harvard. O título resume o espírito do texto: "What Just Happened at Harvard Is Bigger than Me", ou o que acabou de acontecer em Harvard é maior do que eu. Mas o que aconteceu, afinal?

Semanas atrás, Claudine Gay esteve presente no Congresso americano, juntamente com Liz Magill, da Universidade da Pensilvânia, e Sally Kornbluth, do MIT, para ser questionada sobre a passividade da sua instituição na luta contra o antissemitismo.

guerra entre o Hamas e Israel incendiou os ânimos nas três universidades e exibições de ódio aos judeus (e não apenas aos "sionistas" ou "israelenses") se tornaram frequentes.

Foi nesse contexto que Claudine Gay foi questionada se era aceitável exortações ao genocídio de judeus. "Depende do contexto", respondeu Gay.

A resposta é moralmente aberrante para qualquer pessoa dotada de atividade cerebral: a liberdade de expressão tem limites e um deles é o encorajamento à prática de crimes contra terceiros.

Mas a resposta é também hipócrita e ilógica. Hipócrita, porque Gay jamais responderia o mesmo perante exortações ao genocídio de negros, gays ou de qualquer outra minoria.

E é também ilógica, porque faz tanto sentido responsabilizar todos os judeus pelos atos do governo de Netanyahu em Gaza como responsabilizar todos os negros pelos atos de brutalidade de um qualquer governo africano em estado de guerra.

A ideia de que uma etnia é coletivamente responsável pelos atos de alguns é um pensamento totalitário, digno do Terceiro Reich, mas indigno de uma democracia e de um estado de direito.

Mas Claudine Gay não foi apenas contestada pelas suas respostas relativistas. O seu trabalho acadêmico, visto à lupa, revelou vários casos de plágio —um crime intelectual que não seria perdoado a um aluno de primeiro ano em Harvard.

Pois bem: na sua carta, Claudine Gay não nega os erros cometidos. Na audiência do Congresso, deveria ter dito que a exortação ao genocídio de judeus é aberrante e inaceitável. Nos plágios, deveria ter feito as citações devidas.

Porém, o seu afastamento explica-se por outros motivos, acrescenta Gay: pelo racismo que opera na sombra e pela demagogia daqueles que querem destruir "a fé pública nos pilares da sociedade americana", como as universidades, e que não toleram a missão acadêmica de "excelência, abertura, independência, verdade".

Eis a má-fé de Claudine Gay: confrontada com os seus erros, ela desconversa. E joga a carta racial como boia de salvação, sem se aperceber que Liz Magill, reitora da Universidade da Pensilvânia, também pediu a renúncia ao cargo depois de fazer iguais figuras na audiência do Congresso. Liz Magill é branca.

Por outro lado, é impressionante como a ex-reitora de Harvard denuncia uma vasta conspiração contra a sua imaculada pessoa sem apresentar um único fato para a comprovar.

Se alguém destruiu a "fé pública" na Universidade Harvard, foi Claudine Gay, com a tolerância infame ao antissemitismo. Se alguém pôs em causa a "excelência" e a "verdade" da instituição, foi Claudine Gay com os seus plágios.

Que a senhora não veja as coisas da mesma forma só mostra como, na luta contra o racismo e a discriminação, são por vezes os seus "ativistas" que mais sujam essa luta. Como?

Manipulando uma causa justa para se limparem dos seus erros pessoais.

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