segunda-feira, 8 de janeiro de 2024

Edição de Sábado: ‘Um pai mais forte’, MEIO

 

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6 de janeiro de 2024

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Edição de Sábado: ‘Um pai mais forte’

Por Pedro Doria

Aos 66 anos, a historiadora e antropóloga Lilia Moritz Schwarcz é autora, já, de muito mais livros do que é possível contar. Todos sobre o Brasil. Professora da USP e de Princeton, ela é também uma simpatia — alguém com quem é sempre um prazer conversar. Mesmo quando discorda, Lilia instiga, sorri, traz um argumento novo. “História procura refletir sobre o que muda e a antropologia discute sobre o que persiste”, ela observa. E o Brasil, que nesta semana que entra encara o primeiro aniversário do levante mais recente contra a democracia, precisa de ambos. Porque levantes contra a democracia, uns de sucesso, outros fracassados, são tão frequentes que somos obrigados a colocá-los na caixa daquilo que persiste. Que não muda — ou, ao menos, ainda não mudou.

Esta entrevista, quase uma conversa, é sobre o que o Brasil é pelo seu olhar. O Brasil no qual um bom pedaço da sociedade ainda busca “um pai mais forte.” Nesta versão por escrito, foi condensada e editada para facilitar a leitura. A íntegra em vídeo está à disposição de todos os assinantes premium do Meio. Basta seguir o link.

Até 2015, talvez 2016, a impressão que tínhamos era de que o Brasil já havia resolvido seu problema militar. Mas o Alto Comando do Exército Brasileiro foi convidado a participar de um golpe de Estado para manter Jair Bolsonaro no poder apenas um ano atrás. Não aceitou. O comandante da Marinha aceitou e sabemos que houve generais tentados. Não há mais ameaça iminente à democracia brasileira. Mas este pesadelo da constante interferência militar, ele não se resolve nunca?

O governo Lula completa um ano com a democracia bastante assegurada. Mas democracia é um projeto inconcluso sempre e vivemos quatro anos de muitos ataques a ela. No Oito de Janeiro, o Brasil teve o seu Capitólio e, no nosso caso, a participação das Forças Armadas foi grande. Na minha opinião, grande e comprovada. Cultivamos essa cultura das Forças Armadas como o fiel da balança da estabilidade do Estado brasileiro. É assim desde a Guerra do Paraguai, quando o Exército era uma instituição de menor importância e projeção simbólica. Desde quando as Forças Armadas se constituíram como instituição assumiram para si essa definição de salvadores da Pátria. Eles estiveram presentes no golpe da República. Com jacobinismo e tudo mais, sabemos o que aconteceu na Revolução de 1930. Como sabemos o que aconteceu com o golpe de 1964, que vai fazer aniversário redondo esse ano.

O Exército sempre deu golpe, nunca foi fiel da balança da democracia. Precisamos questionar essa representação do Exército como força neutra, como força comprometida com o fortalecimento democrático. A história mostra o oposto, mostra comprometimento com uma política de golpes e contragolpes. Não diria de forma determinística que nunca vamos nos livrar, mas é importante que a gente traga a reflexão para dentro. Para nós. Por que será que uma parte significativa da sociedade espera essa participação dos militares? É importante fazer distinção entre o pensamento conservador, constitucional, e essa extrema direita retrógrada cujo discurso cresceu. Isso que me preocupa. Essa visão, depois de tudo que se fez na Ditadura Militar, de saudosismo e nostalgia de um tempo que nunca foi. Daí você puxa uma ideia interessante: talvez não seja um problema do Exército como instituição, mas do seu imaginário na sociedade. Está na maneira como as Forças Armadas são percebidas por um pedaço da sociedade.

Você já estudou um bocado a ideia de autoritarismo dentro da cultura brasileira. O que é constante nessa busca por autoritarismo na sociedade? O que que você percebe que existe hoje e já estava lá atrás?

Sou historiadora e antropóloga. A mistura é boa porque a história procura refletir sobre o que muda e a antropologia discute sobre o que persiste. Existem algumas estruturas da sociedade brasileira que persistem. O autoritarismo é feito de várias camadas.

Estou terminando um livro sobre imagens da Branquitude. Essa ideia não é a autodefinição de nós, pessoas brancas. Mas há um grupo que foi responsável pela colonização, pela máquina que construiu o escravismo na modernidade. É um grupo muito preocupado com a manutenção do seu status, dos seus privilégios e do monopólio do poder. Esse autoritarismo se reveste numa série de outros ismos, como o racismo. Ou seja, é legado da escravidão, embora esse racismo seja construído também no tempo contemporâneo. Mas eu chamaria atenção ainda para misoginia, machismo, que são outros traços marcantes do nosso autoritarismo. Isso vem do período colonial, quando havia uma clara desproporção na divisão de sexo e gênero na política, mas que era também econômica, era social, e se mantém social.

Aí entra um traço brasileiro que é procurar por um pai mais forte, seja na figura de um senhor de engenho, de um grande proprietário, do colonizador, seja na figura de um imperador. Na figura do presidente. Não estou querendo falar que tudo é igual, que tudo é o mesmo. Mas esses são traços que se reiteram na política brasileira. Brasileiros selecionam seu presidente recorrentemente na ideia de um pai forte. Bondoso, mas atuante. Como é que se explica?

As Forças Armadas aparecem nessa perspectiva de que existe uma instituição acima de nós. Uma instituição que pode regular o que a sociedade civil não regula. Isto se torna um handicap em relação à sociedade civil. À potencialidade da sociedade civil.

Temos ainda a questão da corrupção. Corrupção tira da sociedade o que ela criou. Pelos dados da Unesco, somos agora o oitavo país mais desigual do mundo. Desigualdade produz autoritarismo. Em que sentido isso não é uma moeda direta? Pessoas acabam priorizando governos de matriz autoritária. Pessoas mais pobres tendem a votar em quem promete emprego, promete dinheiro. Pessoas que detém o poder há tanto tempo se sentem mas seguras com uma espécie de fantoche no poder. Nunca dá certo, não é? Podemos ver o que aconteceu com Jair Bolsonaro. Quando entrou, diziam ‘vai cair em um mês’, ‘vai cair em seis’, e ele ficou e mais forte do que já era. Tanto Bolsonaro quanto o fenômeno do bolsonarismo, que continua muito presente.

Entendo tudo o que você falou. Onde está o lugar do racismo na sociedade brasileira. Onde está a misoginia. São traços claros. Mas as coisas se misturam. O eleitorado de Jair Bolsonaro não é um eleitorado branco. Ninguém se elege no Brasil apenas com voto de pessoas brancas. As periferias urbanas votaram maciçamente em Bolsonaro, também a população evangélica. São pessoas que obviamente estavam procurando uma voz de autoridade, alguém que trouxesse ordem. E são também pessoas que sofrem com a desigualdade. Como é que essas peças se encaixam?

Marcadores sociais da diferença, como são sexo, gênero e raça, mas também geração, também região, classe social e religião funcionam numa outra dinâmica quando interseccionados. O que acontece quando todos esses elementos são interseccionados em contexto eleitoral?

Vamos falar da circunstância. Somos historiadores, eu e você. Não é possível falar do crescimento de Bolsonaro sem falar do crescimento das igrejas evangélicas. Ele fez um movimento na direção das igrejas muito por conta da Michelle. É um eleitorado muito vinculado à agenda conservadora. Esse é um eleitorado, você tem toda razão, negro. E votou maciçamente em Jair Bolsonaro. Agora, se pegarmos os resultados da eleição de Luiz Inácio Lula da Silva um ano atrás, veremos que ele teve pesado o voto das mulheres negras.

A sociedade brasileira passa por um processo de letramento racial da maior importância. Pelos resultados do censo do IBGE, pela primeira vez a população parda ultrapassou a branca. Não é que houve um crescimento significativo. Houve letramento racial. As pessoas se dizem negras e pardas agora e não se diziam antes. Temos de colocar tudo isso nesse caldeirão para pensar o que era a circunstância de 2018 e o que foi a circunstância de 2022.

Outra face do autoritarismo é de um eleitorado que sempre vota nos outsiders. Bolsonaro não era outsider, mas se apresentou assim. O que ficou claro nesses quatro anos é que ele não era um outsider, que era um racista, que tinha políticas misóginas. Vamos analisar então a circunstância da Covid. A questão da vacina foi uma pedra angular para muitas pessoas mudarem o voto. Os fenômenos de uma eleição não são parados no tempo.

Não se pode esquecer da polarização, que ainda está presente na sociedade e que fez com que o resultado de 2022 fosse tão apertado. Estou aqui jogando vários elementos que são circunstanciais. É o caso do atentado contra Bolsonaro, em 2018. Muitas eleições giram radicalmente a partir de um drama, de uma tragédia que mobiliza o imaginário social. Sociedades imaginam coletivamente e por isso volto tanto a este tema. O imaginário é poderoso. Derruba ou levanta candidatos.

Vale então a gente começar uma conversa paralela a respeito do lugar da esquerda. O Centro está comprimido, e não só no Brasil. A esquerda, não. Ela está viva e passa por um embate interno. Há uma esquerda que ainda vê como grande questão a enfrentar a luta de classes. Que enxerga tudo essencialmente como um problema econômico. Mas há uma esquerda nova, que começa a ver a sociedade dividida por outras questões como gênero, como raça. Como você enxerga esse embate hoje? É uma briga que pressiona o governo Lula o tempo todo.

Brasília não é um território da paz e do conforto, não é? Mas você tem toda razão, existem muitas esquerdas. Vamos ficar com esse modelo de duas. Uma mais pressionada pelas questões de desigualdade de classe, que é fundamental, e uma que vem trazendo marcadores de identidade. Penso que classe social não é um marcador diverso de outros. Todos precisam ser interseccionados num país como o Brasil, em que a fome voltou. Nós que achávamos que tínhamos erradicado a fome, esse lado tão perverso da desigualdade.

Lula subiu a rampa no 1º de janeiro acompanhado pelos vários setores. Abraçou a questão da diversidade, da pluralidade social. Ele teve uma plataforma vinculada a essas questões e vai ter de se haver com elas. É o caso da pressão, por exemplo, por uma juíza negra no Supremo Tribunal Federal. Eu fui entre tantos e tantas brasileiros uma pessoa que defendeu e defendo. Mais experiências de mulheres no Supremo são importantes. Mais subjetividades de mulheres negras farão do nosso Supremo mais representativo da população brasileira.

É uma questão forte que o governo Lula não enfrentou e agora precisará lidar com outra, também muito forte. Vimos passar, em 29 de dezembro, a Lei do Não é Não. [Nota: a nova lei dá proteção a mulheres contra o avanço inconveniente de homens que se recusam a aceitar um não.] Os proprietários de lugares de show, de bares, terão de fazer treinamento com seus funcionários, de colocar suas regras nos sanitários, os que tiverem câmaras de vídeo terão de guardar o vídeo. Tudo isso é muito meritório. Mas a lei tem um parágrafo que afirma que ela não vale para as igrejas.

Há dúvidas sobre a constitucionalidade desse trecho. Há margem para ir ao Supremo.

Isso. Tem uma discussão importante aí, se pode excluir certos lugares. Essa discussão será importante para a sociedade brasileira. Ela é um termômetro do que vai acontecendo em Brasília, ou seja, você faz os gesto e recua. Que nem o passo do caranguejo, anda dois e volta um. É importante que a sociedade civil brasileira se manifeste, que vigie. Que elogie o que precisa ser elogiado e que pressione para que não exista exceção.

Deixa eu fazer uma provocação. Existe uma transformação a respeito de qual a ideia que o brasileiro faz de si. Entre os anos 1930 e agora, a gente cultivou muito a ideia freyreana do povo formado por três raças. As pessoas gostam muito de bater no Gilberto Freyre porque ele de fato foi o primeiro cara importante que, depois da Primeira República eugenista, se vira e fala ‘não, espera aí, a gente não é nada disso’. Mas ele não é o único. Tem do outro lado, na esquerda, o Darcy Ribeiro falando essencialmente a mesma coisa, não é? Somos uma sociedade mestiça. O IBGE marca os pardos como a maioria de nós. Mas o pardo é a mistura. Pode ser negro com branco, negro com indígena, branco com indígena. Eu me declarei branco e sei, por documentação, que tenho avós negras nos séculos 18 e 19. Sei, pelo meu código genético, que tenho sangue tupi. Eu sou branco. Mas, como a maioria dos brasileiros, sou mestiço. Precisamos reconhecer que a sociedade é racista, homofóbica, misógina. Precisamos ampliar a representatividade nas diversas estruturas de poder. Mas será que ao reconhecer o fato de que precisamos encarar o problema não estamos criando uma sociedade que se vê cada vez mais dividida, incapaz de perceber o que temos em comum? Havia um valor nessa percepção de que éramos um só povo. Há valor em celebrarmos nossa mestiçagem comum. Não?

Já brinquei com você uma vez, tenho quatro horas para responder, né? Olha, essa ideia é muito antiga. Na primeira metade do século 19, o [Carl Friedrich Philipp] von Martius já usou a metáfora do rio que caldeia as três raças. Mas havia uma especificidade. Conforme as águas vinham andando, elas ficavam brancas. Não ficavam mestiças. Ela foi usada pelo Mário de Andrade. O Macunaíma, se você pensar, entrou na poça da pegada do Sumé, que era encantada, e saiu branco, lindo. Seu irmão, como a água estava suja do pretume do herói, saiu da cor do cobre, e o outro só conseguiu lavar as palmas da mão e a sola do pé. O Freyre vem com uma teoria, nos anos 1930, que não é essa que é conhecida, que ele difundiu depois. Já estava em Casa Grande e Senzala. Não é a ideia da mistura de raças que gera o mestiço, é a ideia da mistura que gera o branco. Ele fala do sadismo do colonizador português, mas fala do masoquismo das mulheres indígenas e das mulheres africanas. Olha lá. É isso que define o tempo todo o domínio branco. Nunca foi sobre igualdade. É um modelo que privilegia uma cor.

Mas não citei o Darcy à toa. Ele fala da celebração de sermos mestiços.

Darcy Ribeiro falou que seremos uma Nova Roma. Essa possibilidade está dada na ideia do crescimento da categoria pardo no censo. Isto é algo que o movimento negro fez muito bem politicamente. Racializou o conceito de pardo, decidiu usar os termos do IBGE. Porque aí, se colocarmos juntos pretos e pardos, a população negra compõe a maioria no Brasil. Na minha opinião, este não é mais um projeto como o do Darcy, que é um projeto de mistura. É uma averiguação dos lugares sociais. Por isso Branquitude é uma construção social como Negritude. Só que Negritude virou um conceito de autoelevação e Branquitude virou um conceito de acusação. É o seu exemplo, Pedro. A despeito de você vir de uma família mestiça, você se definiu como branco. Porque no Brasil, como diz [o sociólogo] Oracy Nogueira, branco é uma aspiração social e é uma delimitação externa social. Ou seja, pessoas da elite, como nós, são brancas. No Brasil, como ele diz, cor é uma mistura de fenótipo com origem social. É disso que estou falando. Durante muito tempo, por conta do mito da democracia racial, você não podia fazer ativismo negro. Ativismo indígena também foi muito retardado no país por causa dessa ideologia.

Precisamos menos de rótulos e mais averiguação da realidade. Precisamos de um país em que as maiorias não sejam minorizadas. Nenhum dado mostra que esse país é mestiço para valer quando pensamos em representações políticas. Nós podemos inventar uma miríade de termos, mas a gente precisa lidar com essa desigualdade fundamental do Brasil. Nisso concordo com o movimento negro. É preciso dar letramento racial, sobretudo para as populações brancas.

Deixa eu dar uma última provocada. Última pergunta. Quero insistir no ponto em que concordo com você. Não existe, nas nossas estruturas de poder, seja nas empresas, seja no governo, não existe representatividade do que o brasileiro é. Nem em gênero, nem em raça. Sem política pública para enfrentar isso, não vamos resolver. Então política de cotas, Lei do Não é Não, mais mulheres no Supremo, incluindo mulheres negras, fazem parte do que é necessário. Precisamos ter essas experiências de vida representadas nas instâncias máximas de decisão. Aí concordamos inteiramente. Mas acho que estamos inventando um discurso público no qual perdemos a noção do todo. Do que é o povo brasileiro. Não só na direita, como também na esquerda, estamos tendo dificuldade cada vez maior de nos vermos como um povo que tem algo em comum. Essa divisão por identidades está criando uma divisão que é ideológica. É uma divisão que a gente escolhe ter pela maneira como escolhemos olhar para o mundo.

Os discursos de nacionalismo são também criações. Criações do final do século 19. A noção de povo é uma criação. Que povo é esse?

Claro. Mas esse é o ponto em que quero chegar. A gente escolhe se ver como um povo ou não.

Então espera aí. Na minha opinião, né? Se você pegar os grandes teóricos dos nacionalismos, eles chamaram atenção sobre como eram discursos de comunidades que se imaginavam. Discursos perigosos, como dizia o [historiador Eric] Hobsbawm. Perigosos por quê? Porque provocaram muita violência. Basta ver como o imperialismo europeu dividiu o mundo à sua imagem. Há uma série de teóricas, como a [pensadora feminista] Anne McClintock, que tem chamado atenção para o fato de que nacionalismo sempre teve gênero e raça. Nacionalismo era o homem, branco, heteronormativo europeu dividindo e legislando sobre o mundo. O que é a nossa História Universal se não a construção de um projeto de predomínio de uma Europa? Europa que foi uma construção do século 18, que foi colocada no centro dos mapas e foi colocada, inclusive, de forma maior do que ela tem de superfície. Essas são operações que têm história, como nossa construção de povo tem história. São questões que foram abafadas, silenciadas, apagadas, camufladas. Questões que vão aparecer e vão doer, porque sempre doeram para as pessoas que não se viam representadas.

Isso está criando divisão nesse mundo, sim. A gente pode lutar por um mundo com mais diálogo, mas um diálogo que não apague, como aconteceu durante muito tempo. As populações brancas, masculinas e heteronormativas onde, imagino, você se coloca, estão numa situação nada confortável, não é? Mas a gente tem que pensar o seguinte: durante muito tempo conforto ontológico era um privilégio da Branquitude. E agora estamos vivendo o que outras populações sofreram também.

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