domingo, 14 de janeiro de 2024

AREIA BRANCA, A SÍNTESE DA TRANSIÇÃO ENERGÉTICA, MEIO

AREIA BRANCA, A SÍNTESE DA TRANSIÇÃO ENERGÉTICA

Por Olavo David

A vista é de tirar o fôlego. A poucos quilômetros das primeiras casas do município de Areia Branca, no Oeste do Rio Grande do Norte, as imensas construções brancas ganham a paisagem paradisíaca, singrando o horizonte de céu predominantemente azul – um azul forte, quente como o clima na região. São dezenas de torres com cerca de cem metros de altura, tendo hélices pouco menores que mantêm uma rotação constante. Mais de perto, é possível ver as cabines que operam as estruturas, pequenas em meio a tanto aço. Em um dia de sorte e com muito esforço, podemos ainda ver alguns dos trabalhadores do complexo eólico que hoje circunda a cidade. Pendurados a dezenas de metros, parecem formigas escalando o pé de uma cadeira gigante, com as cabeças brilhando por causa dos capacetes fluorescentes que usam. 

A maior parte desses trabalhadores é da cidade. Elevada à categoria de município em 1933, Areia Branca passou um bom bocado da sua história limitada à indústria salineira. O próprio nome da cidade deriva da “Costa Branca”, como é conhecido o litoral oeste potiguar, pelas imensas áreas de extração do condimento. Nos anos 1990 e 2000, porém, a força de trabalho local foi redirecionada à indústria do petróleo. Equipes de campo da Petrobras usavam a estrutura da cidade como base para prospecções no entorno da região, e era comum que os macacões laranja colorissem as ruas do local. Muitos moradores integraram as equipes de campo, que se dividiam em quatro: a turma da frente, que abria picadas na mata para dar entrada às caminhonetes; a turma da sonda, que atuava na perfuração e instalação de dinamites três metros abaixo do solo; a turma da sísmica, que realizava as explosões e analisava os primeiros dados; e a turma da topografia, que fazia as medições e definia a localização para os cavalos de força, as estruturas que bombeiam o petróleo para cima. 

Nivaldo Moura, de 62 anos, fez parte de algumas das primeiras equipes da Petrobras que chegaram ao oeste potiguar, em 1992. “Eu entrei na turma da sonda, a convite de um funcionário. Muita gente entrou, hoje estão quase todos aposentados”, diz o agora chefe de campo para explorações offshore. Além de empregarem a força local, as equipes movimentavam o comércio, os hotéis e os bares. Moura ficou na área fóssil, mas garante que o impacto da eólica é maior. Mais pessoas são envolvidas nos processos estruturais das turbinas, mais capacidade técnica é requerida, e a estrutura para chegar aos parques eólicos precisa ser mais bem construída, pois os equipamentos são mais frágeis que os usados pelos petroleiros. Como as pás e a própria torre de sustentação chegam em imensos caminhões de pelo menos dez eixos, escoltados por dois carros de passeio, as estradas têm de ser melhores, lisas, com manutenção constante. Enquanto as equipes da Petrobras se mantinham na cidade por algumas semanas – meses, no máximo –, o complexo eólico segura o corpo profissional por maiores tempos em suas estruturas, para monitoramento, manutenção e até novas empreitadas. 

‘O trabalho é mais satisfatório’

Não é pouca a importância de Areia Branca para a energia renovável brasileira. Por lá, com os três parques eólicos envolvidos na produção e distribuição de fonte limpa, são gerados cerca de 3 mil MWh por mês, boa fatia dos quase 8 mil gerados pelo Rio Grande do Norte inteiro – sendo o estado o líder em geração de energia eólica no Brasil. A cidade, lar para 24 mil pessoas, já se tornou uma referência em mão de obra especializada. Funcionário do parque eólico em Ponta do Mel, vilarejo litorâneo na circunscrição de areia-branquense, Dennys Nunes, de 46 anos, seguiu as tendências econômicas da região. Trabalhou com sal e petróleo e agora está na energia renovável. 

Como terceirizado a serviço da Petrobras, usou os conhecimentos elétricos para a manutenção dos cavalos de força – as “UBs” – que pipocavam no solo da caatinga potiguar entre Mossoró, a “capital do Oeste”, e Areia Branca. A partir de 2011, com o início dos trabalhos no pré-sal, conta Nunes, a área petrolífera decaiu no Rio Grande do Norte, derrubando também os salários do setor. “Quando começou a eólica, o petróleo estava em decadência por aqui. As empresas foram fechadas, a Petrobras estava desinvestindo. Os salários agora vão de R$ 5,5 mil a R$ 7 mil. Na Petrobras, as terceirizadas pagavam de R$ 1,5 mil e R$ 2 mil”, conta o eletricista. Além da remuneração, há outra vantagem de trabalhar com energia limpa: a versatilidade. Enquanto mexia apenas com a parte elétrica das UBs há cerca de uma década, Nunes hoje trabalha na parte de Operação e Manutenção (O&M) das turbinas, o que, segundo diz, “é um aprendizado maior. Trabalho com mecânica, elétrica, segurança do trabalho. Em O&M, a gente se suja de graxa, sobe na torre, faz tudo. O trabalho é mais satisfatório.”

No Nordeste se concentra 90% da energia eólica gerada no país. Outros 8% estão no Sul, e as outras regiões dividem os cerca de 2% restantes. A oferta e a demanda pelos ventos fortes que sopram “onde o vento faz a curva”, já que Areia Branca fica na volta que o continente faz para subir em direção ao Caribe, ajudam a formar uma espécie de hub eólico na Costa Branca. “Muita gente se qualificou na cidade. Hoje você encontra areia-branquenses em qualquer lugar do Brasil, trabalhando como especialista nisso, alguns até fora do país”, aponta Nunes. A exigência de cursos especializados – algo inexistente à época do domínio do petróleo – girou outra roda da economia local, a do conhecimento técnico. Cursos com siglas como NR-10 (uma norma do Ministério do Trabalho sobre segurança em locais elétricos) e GWO (Organização Global dos Ventos, em inglês) específico para profissionais de eólicas, que especializa o profissional para combate a incêndios, primeiros socorros, manuseio e trabalho em grandes alturas, já formaram diversos profissionais na cidade e na região. 

A nova ordem mundial

Em um cenário de aumento da temperatura média do planeta e recordes de calor, a expansão de fontes renováveis de energia é mais que um empreendimento, é uma necessidade – e alguns países tomam a liderança neste movimento. Nesta semana, a Agência Energética Internacional (IEA, na sigla em inglês) divulgou relatório no qual aponta que, entre 2022 e 2023, houve 50% de aumento na produção e na capacidade energética limpa ao redor do mundo. Além de representar o maior crescimento em 20 anos, é um alento quando se observa que o  mundo ficou um pouco mais próximo de atingir a meta estipulada na COP28 de triplicar a produção energética limpa até 2030. Brasil, EUA e a União Europeia, enquanto bloco, registraram aumentos recordes na capacidade energética limpa. Por mais que, por aqui, o incremento seja puxado pelos biocombustíveis – área na qual a Petrobras investe há quase duas décadas –, outras fontes, como a eólica e a solar, contribuem para que o país diversifique sua matriz de geração.

A contribuição do Nordeste catapultou o Brasil como potência eólica. De um 12º lugar em 2012, quando começaram as primeiras obras nos arredores do Oeste potiguar, o país saltou para a sexta posição no ranking global do setor, em 2022. Ainda que não tenha veículos elétricos suficientes para justificar uma mudança na própria cidade, apenas um posto de gasolina sobrevive em Areia Branca. O consumo residencial no município já é feito pelo complexo eólico, que tem capacidade para abastecer cerca de 200 mil pessoas anualmente com sua produção – cuja capacidade máxima foi atingida em 2015, logo no segundo ano de operação. Geradores a diesel, por exemplo, comuns na cidade até a década de 2000, já não são mais vistos, e os frequentes apagões causados pela precariedade da rede de distribuição da eletricidade usual são coisas do passado. Mais simples e mais “leve”, a distribuição das eólicas garantiu até mesmo a autossuficiência do local, agora independente da rede estadual. Ao fim e ao cabo, em um lugar onde a água é recurso raro desde os primórdios do povoamento, não depender de hidrelétricas é um salto para o futuro. No presente.

 

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