O jogo de saída de Vladimir Putin para a Guerra da Ucrânia ganhou contornos mais definidos nesta quarta-feira (28), quando o Kremlin afirmou que o conflito irá durar "no mínimo até a liberação da República Popular de Donetsk".
A frase foi do porta-voz Dmitri Peskov, na sua conferência telefônica usual com repórteres que cobrem o dia-a-dia do governo russo. É a primeira vez que uma meta da guerra iniciada em 24 de fevereiro foi colocada de forma tão objetiva.
A autoproclamada república é uma das duas províncias ucranianas que compõem o Donbass, a bacia do rio Don, uma região de maioria russófona que estava parcialmente sob controle de separatistas pró-Kremlin desde a guerra civil que seguiu a anexação da Crimeia por Putin, em 2014.
Seu reconhecimento e o de sua irmã, Lugansk, foi um dos pretextos para a invasão —elas pediram ajuda de Moscou contra Kiev, assim como agora seus dois líderes estão em Moscou para finalizar a anexação formal das áreas à Rússia, numa espécie de fecho de ciclo.
Denis Pachilian, de Donetsk, e Leonid Psetchnik, de Lugansk, voaram à capital russa após a finalização de referendos nas duas regiões na terça (27). Assim como ocorreu nas áreas sulistas de Kherson e Zaporíjia de forma ainda mais suspeita por tratarem-se de regiões recém-ocupadas, uma maioria quase unânime votou a favor de ingressar na Rússia naquilo que foi descrito como uma farsa em Kiev e no Ocidente.
Psetchnik foi ao Telegram pedir a Putin que "considere a questão", no que foi seguido pelos demais líderes locais, mais um passo de um balé coreografado que deve ter o próximo passo com a fala do presidente ao Parlamento na sexta (30). A praça Vermelha, coração de Moscou, amanheceu com telões sendo montados sob cartazes com a frase "Donetsk, Lugansk, Zaporíjia, Kherson - Rússia!", sugerindo um evento para comemorar a anexação.
A fala de Peskov deixa claro que a fronteira que o Kremlin pensa em chamar de sua ainda não está sob seu controle. O problema para Moscou é que, enquanto o controle sobre Lugansk é quase total, assim como nas áreas ao sul, em Donetsk ainda falta algo como 40% do território para tomar. Segundo o Ministério da Defesa, a contraofensiva ucraniana para tentar retomar Liman, cidade estratégica da região, falhou nesta quarta.
Ainda não há relatos independentes disso, mas o fato é que os recentes sucessos militares do governo de Volodimir Zelenski, que reconquistou cerca de 5% de seu território ao capturar de volta a região de Kharkiv no começo do mês, estão estagnados.
A derrota ali obrigou Putin a mudar sua estratégia na guerra, decretando uma protelada mobilização parcial de pelo menos 300 mil reservistas e acelerando a anexação das partes que já domina da Ucrânia. É uma jogada de risco, pois a guerra até então pintada na TV estatal virou parte da realidade das cidades russas, com protestos e fuga de jovens para países vizinhos.
Ela não deve ter efeito imediato, dado que ao menos dois meses de treinamento são necessários, diz a Defesa, para mandar tropas à frente. Mas abre a perspectiva de um reforço cuja a falta fez Putin fracassar na tentativa inicial de tomar Kiev de assalto e, depois, obrigou o recuo para focar o combate no Donbass e levou à perda de Kharkiv.
Antes da mobilização, o apoio popular a Putin estava em 83%, segundo o instituto independente Levada, e a maioria dos russos achava que as áreas ocupadas deveriam ou ser declaradas autônomas, ou serem absorvidas como entes da Federação Russa.
Ninguém falou sobre os custos disso, claro, ainda mais em um momento em que a economia russa luta para driblar as sanções impostas pelo Ocidente devido à guerra. A anexação da Crimeia, que se deu sem guerra e com um referendo entre uma população majoritariamente pró-russa, custou centenas de bilhões de dólares ao Kremlin.
Só o subsídio ao orçamento dos dois entes federais da península, a República da Crimeia e a cidade de Sebastopol, custou R$ 7,7 bilhões a Moscou em 2021. E é uma região que tem quase quatro vezes menos moradores do que as áreas ocupadas tinham no pré-guerra.
Isso dito, Peskov colocou politicamente um marco que antes não havia. No dia da invasão, Putin falou em "proteger os povos do Donbass" e prometeu "desmilitarizar e desnazificar" o vizinho.
Ao longo do tempo, autoridades foram admitindo interesses territoriais: um general falou em unir a Rússia à área separatista russa da Transdnístria (Moldova), anexando toda a costa ucraniana, e o chanceler Serguei Lavrov admitiu que queria ver Zelenski deposto.
Daí a desconfiança óbvia acerca do limite posto pelo porta-voz, que de todo modo não será aceito imediatamente por Kiev e pelo Ocidente, mas aí Putin joga com a crise energética da chegada do inverno e da redução do fornecimento de gás russo ao continente para minar o apoio a Zelenski entre europeus —o que gera as suspeitas acerca do ataque aos gasodutos do mar Báltico na segunda.
Por outro lado, Peskov pode sugerir a exaustão, ainda que momentânea e à espera do efeito da mobilização, da campanha russa. De resto, uma vez consideradas suas, as áreas ocupadas viraram parte da chantagem atômica contra o Ocidente: Putin já lembrou que a doutrina nuclear russa permite o emprego desse tipo de bomba em caso de ataques convencionais que ameacem seu território.
Isso gerou temores no Ocidente de que o russo possa usar um artefato do tipo, talvez de menor potência, contra tropas ucranianas. Nesta quarta, o chanceler polonês, Zbigniew Rau, disse que a Otan deverá preparar uma "reação devastadora", ainda que não nuclear, se isso ocorrer.
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