terça-feira, 20 de setembro de 2022

Marcelo Coelho - Hoje o hábito é tornar mais difícil e estrangeiro o que era brasileiro e simples, FSP

 O romancista L. P. Hartley dizia que o passado é um outro país: "As pessoas se comportam de um jeito diferente por lá".

É por isso que, conforme vou ficando mais velho, sinto-me um estrangeiro no presente —nem falo da tecnologia ou dos hábitos das pessoas. O fenômeno aparece na linguagem. O português que falo, leio e escrevo começa a se tornar arcaico.

Meu avô, que eu não conheci (morreu em 1958), não falava "Paraná": contam-me que pronunciava "Paranã". Ou "Paranan", para ser mais exato.

Meu pai não falava paletó; por muitos anos, ouvi-o dizendo "paletô". Imagino que, com o tempo, foi percebendo que aquilo era pedante, e resolveu adotar a pronúncia geral.

A Ilustração traz quatro faixas em formato curvo espalhadas pelo quadro, elas possuem contornos em rosa, preto e cinza. cada faixa tem uma palavra inserida com a ortografia incorreta: por que, tal vez, com tudo e por ventura.
Ilustração de André Stefanini para coluna de Marcelo Coelho - André Stefanini

De resto, já raro se falar em paletó: tudo, hoje, é "blazer". O pior é que ele podia aparecer perguntando "onde está o ‘paletô’ do pijama", para se referir à parte superior de um item de indumentária que, de todo modo, também foi condenado à extinção.

Insisto em me referir ao festival de "Montrê", e não "Montrô", porque a cidade se chama Montreux, e não "Montreaux". Não me conformo em falar "Cânes" quando o certo é "Cánes", mas para não passar por besta acho melhor ficar em silêncio.

Mas os erros se multiplicam. Já vi escreverem "Clarice Linspector" em vez Lispector. E "Augusto de Campus" em vez de Campos.

A lógica dessas batatadas não é difícil de intuir. A pessoa menos familiarizada com nomes de escritores sofre naturalmente do medo de errar. Assim, na dúvida, escolhe a versão mais complicada.

Antigamente, a dificuldade de leitura levava os menos instruídos à simplificação e a uma tradução imaginária do que é estrangeiro para o que é familiar. Conheci um taxista que, diante de uma placa indicando a rua Groenlândia, lia "rua Crioulândia". Outros tempos.

Hoje, os erros desse tipo perderam seu caráter popular; mudaram de classe —nascem do interior de uma classe média que se julga mais instruída do que é. O equívoco se origina da complicação.

Típico disso, e presente em toda parte, é o hábito de dizer "até então" em vez de "até agora". "Não tive notícias do Anderson até então." O "até então" era bonito de usar, quando corretamente se referia ao passado.

"Tancredo Neves, um político discreto até então, virou um ídolo popular no fim da ditadura." A frase faz sentido; nada tem a ver com alguém comentando a última pesquisa eleitoral que diz "a candidatura Tebet não decolou até então".

Na mesma linha, verifica-se uma pandemia do "sobre". Funciona assim. O normal, o certo, é dizer: "os deputados vão debater o novo projeto de lei". Mas a moda é escrever: "Os deputados vão debater sobre o novo projeto de lei".

Debater sobre, discutir sobre, comentar sobre. Talvez a ideia de debater, discutir, comentar, seja abstrata demais, pressuponha algum tipo de complicada operação mental, de modo a tornar implausível o uso do objeto direto.

Além disso, como as faculdades humanas da atenção e da concentração têm decaído ultimamente, qualquer sentença um pouco mais longa já não se aguenta sozinha sem preposições.

Assim, sobre algum cientista, escreve-se que "as áreas de pesquisa a que ele se dedicou eram sobre astrofísica e medicina nuclear".

Preposições e conjunções sofrem, ao mesmo tempo, de uma espécie de desintegração gráfica: "talvez" vira "tal vez", "porventura" vira "por ventura", "contudo" vira "com tudo" (o que é razoavelmente lógico, afinal).

Está longe o tempo em que as pessoas não sabiam quando usar "por que" ou "porque". Tudo se separa, porque entre uma sílaba e outra estamos também respondendo ao WhatsApp de outra pessoa, ou ligados no TikTok (Tiktok?).

Exceção simpática no complicacionismo da classe média é escrever "zap" ou "zapp" em vez de "WhatsApp". Mas o que prevalece é tornar mais difícil e estrangeiro o que era brasileiro e simples. O nome Martim, como em Martim Afonso de Sousa, hoje é oficializado como se fosse espanhol: Martin Afonso de Sousa.

Pobres bispos, pobres cardeais! "Don" Aloísio Lorscheiter... "Don" Paulo Evaristo Arns... O que virá em seguida? "Padin" Ciço? "Don" Pedro 1º? Guimarães "Rosas"? José de "Além Cá"? Ou "Além K"? Paciência; quando estiver "discutindo sobre isso" com todos eles, lá no "alén", o país já estará reduzido à Idade da Pedra que tem buscado até então.


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