André Sampaio
Em seu legado narrativo, conta-nos Hesíodo um dos episódios que ficaria sacramentado na mitologia grega: como um dos castigos a Prometeu, um filho de titã que injuriou o Olimpo, Zeus endereça à humanidade uma figura acompanhada de famigerado recipiente: é a caixa de Pandora. Removendo-lhe a tampa, a despeito de advertências em contrário, a personagem espalha incontáveis males, dissabores e caos por seu novo mundo, pintando uma cena que ficaria perenizada no universo das artes.
Com didatismo, o evento ficcional evidencia, entre outras possíveis leituras, o quanto uma decisão inadvertida ou inconsequente pode resultar em padecimentos evitáveis. O filósofo Luc Ferry, em seus estudos mitológicos, chama a atenção para o fato de que narrativas como essa tratam "de nosso lugar singular no coração do universo". "E é a partir desse lugar", pontua, "que será preciso colocar o problema da existência humana, do caminho que precisamos buscar e, se possível, encontrar, neste mundo".
No percurso existencial do Brasil, em que pesem nossas contradições infelizes do passado recente, é fato que vínhamos, nestas décadas agasalhadas sob a Constituição Cidadã, em trilhos que se pretendiam democráticos e que, pouco a pouco, se substanciavam. E, apesar de não poucos desacertos, foi possível assistirmos a uma materialização de conquistas de impacto, em diferentes esferas sociopolíticas. O repreensível outubro de 2018, contudo (ironia do destino, efeméride de 30 anos da Carta), nos reservaria ingresso em um período de sombras de densidades insólitas no contexto da Nova República.
E aqui nos encontramos, cara leitora, caro leitor: a assistir, dia sim e no outro também, a uma cruzada de ataques ao sistema eleitoral e ao Judiciário, a deteriorações de políticas fundamentais, a ultrajes à imagem nacional na política externa, ao regresso ao mapa da fome, à desproteção às minorias, à celebração da desrazão, da anticiência e da antiecologia, a desinvestimentos em educação, a estímulos ao ódio... Não seria exagero se quiséssemos aplicar aqui, em vez das reticências, um enorme "etc.", dada a listagem de casos, que brotam "ad nauseam".
A esta altura, nada mais nos espanta; diga-se de passagem, o que é, a um só tempo, preocupante e revelador —tudo parece fazer parte natural da paisagem. Trata-se, para usarmos termo introduzido por Émile Durkheim nas ciências sociais, de um estado de anomia, ávido por deitar mais e mais suas raízes. É um estado de falhas viscerais na manutenção de alicerces da sociedade. Ou, para recorrermos ao que nos delineou o poeta grego, é nossa caixa de Pandora, tranquilamente escancarada.
De volta ao mito, a propósito, faltou assinalar que, no fundo da caixa, havia restado nada menos que a esperança, como uma espécie de panaceia. Sorte nossa é que não precisaremos nos agarrar a qualquer fragmento dela: na realidade, nos bastará outra caixa, a urna eletrônica, diante da qual, tão logo chegue o aguardado pleito, exerceremos nosso solene direito de escolha, um dos exercícios por excelência da cidadania em um país que aspira a dias melhores.
E não esqueçamos: em tempos como estes, essencialmente anômicos, quanto antes possamos selar a caixa obscurantista, melhor.
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