Coloque uma garrafa de cerveja em cima de uma mesa e, com o dedo indicador, comece a empurrar o gargalo. A garrafa vai se inclinar, mas se você retirar o dedo ela volta à posição vertical.
Agora continue a empurrar. Vai chegar a um momento em que ela se inclina de tal modo que a queda é inevitável. Esse ponto, quando não adianta mais tirar o dedo e a queda ocorre de maneira inexorável, é o tipping point. Em português, é o ponto de inflexão.
Nas últimas décadas, à medida que o planeta esquenta com as mudanças climáticas, os cientistas têm se preocupado com a possível existência de tipping points.
Será que a partir de uma certa temperatura a calota polar do ártico vai derreter de maneira irreversível? Ou as geleiras vão deixar de ser restauradas a cada inverno? Ou os corais vão desaparecer?
Nem todas as mudanças passam obrigatoriamente por um tipping point. Quem já brincou com um João Bobo na infância lembra que esse boneco, ao contrário da garrafa de cerveja, sempre volta à vertical, independentemente de quanto o empurramos.
Devido a esse fato, a primeira preocupação dos cientistas foi descobrir quais fenômenos causados pelas mudanças climáticas poderiam passar por pontos de inflexão.
Nos últimos anos, foram identificados 16 fenômenos nos quais podem ocorrer tipping points, caso a temperatura do planeta continue a aumentar. Entre eles estão o colapso da camada de gelo da Groenlândia, o colapso do gelo no oeste da Antártica, a morte dos recifes de coral, o derretimento do permafrost na Rússia, o colapso da corrente marítima de Labrador, a perda dos glaciais, a morte da Floresta Amazônica, o colapso da corrente do Atlântico, a morte das florestas sub-tropicais e o colapso da calota polar do Ártico.
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Identificados os fenômenos, os cientistas tentaram estimar quanto a temperatura do planeta ainda precisa subir para atingirmos o ponto de inflexão. Mas, ao contrário do caso da garrafa de cerveja, em que as leis da física nos permitem calcular com precisão o ângulo a partir do qual a garrafa cai de forma inexorável, para esses fenômenos planetários os cientistas só conseguem calcular um intervalo de temperatura em que o fenômeno deve ocorrer.
Exemplo: para que a Floresta Amazônica atinja o ponto de inflexão, os cientistas acreditam que a temperatura tenha de estar entre 2 e 6 graus centígrados acima da temperatura em que o planeta estava antes da revolução industrial.
Temos casos como o degelo da Groenlândia que deve ocorrer quando a temperatura atingir de 1 a 3 graus acima da temperatura da era pré-industrial ou o degelo do Ártico, que só deve atingir o tipping point mais tarde, quando a terra aquecer entre 4 e 7 graus.
Nosso planeta já está 1,1 grau mais quente do que na era pré-industrial, e para cinco dos 16 fenômenos em que deve ocorrer o tipping point, já entramos no limite inferior do intervalo de temperatura em que ele pode ocorrer.
O mais preocupante é que no limite de aquecimento máximo acordado na convenção de Paris (entre 1,5 e 2 graus centígrados) oito desses fenômenos vão entrar no intervalo de temperatura em que o tipping point pode ocorrer.
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É claro que esses intervalos de temperatura podem estar errados, mas esses valores são as melhores estimativas que temos hoje. O fato de em muitos casos já estarmos dentro do intervalo é preocupante.
A humanidade pode relaxar e esperar mais algumas décadas sem se preocupar com o aquecimento global e descobrir se essas estimativas estão certas ou erradas, ou conter o aquecimento hoje. Mas é bom lembrar que, tal qual a garrafa de cerveja, quando o tipping point é atingido o fenômeno se torna irreversível. Vale a pena pagar para ver?
Mais informações: Exceeding 1.5°c global warming could trigger multiple climate tipping points. Science https://doi.org/10.1126/science.abn7950 (2022)
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