Entrevista com
Fernanda Montenegro
04 de novembro de 2021 | 17h26
Fernanda Montenegro viveu o dia de hoje como se fosse estrear uma nova peça. “Passei o dia me preparando para entrar em cena à noite”, comentou ela ao Estadão, em conversa telefônica. A analogia se referia a sua mais nova conquista: a atriz foi eleita nesta quinta-feira, 4, para a cadeira 17 da Academia Brasileira de Letras, antes ocupada por Affonso Arinos de Mello Franco. Não houve concorrência – a artista de 92 anos concorreu sozinha, recebendo 32 votos. Houve ainda dois em branco.
“Confesso que não esperava tal atitude, pois sou atriz e não escritora. Mas mantenho uma estreita ligação com a Academia, onde há um palco e no qual já me apresentei algumas vezes”, explicou Fernanda, que previa uma discreta comemoração: ao lado da família e poucos amigos, ela receberia alguns acadêmicos em um hotel em Copacabana, na noite de ontem.
A entrada da dama do teatro brasileiro na ABL foi festejada no meio cultural desde o anúncio de sua candidatura, em agosto. Autora de Prólogo, Ato, Epílogo, autobiografia publicada em 2019, Fernanda representa simbolicamente, com sua eleição, a força da classe artística em tempos de cultura demonizada. “Especialmente a função de ator, profissão que pais e mães nunca desejam para seus filhos”, comenta. “Estamos nós, artistas, sendo estrangulados no momento atual – há uma intenção de nos matar profissionalmente por pessoas que não percebem que a transcendência vem por meio da arte.”
Veja os principais momentos da entrevista, realizada antes de consumada sua eleição para a ABL.
Sua expectativa ao ser eleita para a Academia é a mesma de uma estreia teatral, então?
Sim. É como se hoje, com a eleição, fosse o primeiro dia de uma produção teatral, quando todos, técnicos e atores, se encontram pela primeira vez. E a estreia, de fato, a grande festa, deve acontecer em três ou quatro meses, quando eu tomar posse.
Qual o significado dessa eleição para a senhora?
Penso ter encontrado o momento de simbolicamente aproximar aquele palco que existe na sede da ABL de um público mais amplo e não apenas acadêmico. Não estou dizendo que a Academia seja fechada, pelo contrário: minha chegada só vai reforçar o time de membros que não se dedicam apenas à literatura. Penso em dois nomes que já se foram, como Ferreira Gullar e Dinah Silveira de Queiroz, pessoas que, além de sua arte, eram próximas de uma política contestadora, de um esquerdismo quase absoluto.
A ABL já recebeu cineastas, artistas plásticos e outras qualificações, mas é a primeira vez que abre as portas para uma atriz.
O que é significativo por se tratar de uma profissão que sempre existiu pela força de seu apelo vocacional, mas que também foi sempre considerada marginal. Shakespeare e Molière se diziam atores antes de serem dramaturgos, o que não evitou de eles também serem marginalizados.
A senhora cogitou disputar uma vaga na Academia em 2018, mas logo retirou sua candidatura. Por quê?
Na época, eu estava escrevendo minha biografia, mas também notei que havia outros criadores de maior representatividade artística que buscavam a vaga, então preferi não disputar.
O anúncio de sua candidatura foi muito festejado pela classe artística. Como a senhora, que passou por momentos políticos conturbados em sua carreira, analisa o que se passa hoje?
Trago muito vivo na memória o período militar, que foi terrível por ser conduzido por exterminadores da liberdade artística. Mas, não foi um governo eleito pelo voto, como o de agora. Nossa grande tragédia é ter um presidente eleito democraticamente. Eu me pergunto: por que se votou nesse monstro? O que não foi resolvido, do ponto de vista social, para termos esses governantes? Por que as favelas aumentaram tanto nos últimos anos? Isso é o pior de tudo.
A senhora já disse não gostar de falar de esperança...
Na verdade, não gosto da forma como a esperança é tratada no Brasil, onde a solução é sentar e esperar. Temos que ter uma esperança ativa, que produza soluções.
A pandemia pode deixar algum ensinamento?
Sim, de que precisamos nos unir para deter a tragédia e não permitir que esse assunto continue sendo tratado como um processo criminosamente político, ou seja, cuja intenção é saber como faturar com isso e deixando em segundo plano o que realmente importa, que é salvar vidas.
A senhora chegou a dizer que, na pandemia, a morte se apresentou de uma forma física, o que a fez lembrar da Idade Média.
É verdade pois, apesar dos avanços, o vírus ainda continua um mistério. Tomei três doses da vacina em seis meses, mas ainda não me sinto segura para sair na rua nem receber pessoas em casa. Se tirei algum proveito disso foi aprender a não perder tempo com conversas bobas no telefone (risos).
Mas faz falta a ida aos teatros, não é verdade?
Sim, quero o palco de volta. Como já disse, o teatro promove a reflexão mais poderosa que o ser humano pode encontrar. É estabelecido entre palco e plateia um jogo criativo que transcende. E isso ainda que a classe artística seja considerada por alguns como comedores dos recursos públicos. Quero mostrar que é uma inverdade, espero levar os espetáculos que fiz a partir de textos do Nelson Rodrigues e Simone de Beauvoir para muitos lugares.
E escrever também?
Talvez. Na minha madureza (não gosto de “velhice”), acho que ainda tenho histórias para contar.
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