quinta-feira, 25 de novembro de 2021

Aprendendo com os alemães: a tríplice coalizão, do blog do Sergio Abranches

Acaba de ser anunciada a nova coalizão de governo na Alemanha, que permitirá ao social-democrata Olaf Scholz suceder a chanceler Angela Merkel, de quem foi ministro das Finanças por quatro anos. Merkel encerra esta semana 16 anos de governo, aclamada como grande líder europeia e global e exímia negociadora. Não é pouco para uma política conservadora saída da Alemanha Oriental, física de formação, diplomada pela universidade Karl Marx. Iniciou sua exitosa carreira no período chamado "despertar da democracia", com a queda do Muro de Berlim. Despontou como porta-voz do governo do cristão-democrata Lothar de Maizière da Alemanha Oriental, único eleito pelo voto democrático em eleições multipartidárias, na Alemanha Oriental. Tornou-se a primeira mulher a ocupar o posto de chanceler e ter o segundo governo mais longevo da Alemanha do após-guerra. Ao passar a chancelaria, Merkel terá ficado no poder os mesmos 16 anos de Helmut Kohl (1982-1998), até hoje o mais longevo dos chanceleres alemães.

A Alemanha desenvolveu uma singular capacidade política no após-guerra, de reinterpretar o princípio de Lampeduza, "tudo precisa mudar para que permaneça o mesmo". Merkel foi o ícone contemporâneo dessa tradição política. As lideranças políticas alemãs se tornaram especialistas em harmonizar continuidade e mudança, assegurando, desta forma, notável estabilidade política e a possibilidade de governos duráveis. Essa sucessão é exemplar, neste sentido, sai um governo de centro-direita, entra um governo de centro-esquerda, mas o próprio Scholz se torna um instrumento da continuidade entre os dois. Seus parceiros na coalizão, o partido Verde e o FDP, principalmente os Verdes, cuidarão de promover a mudança.

A filosofa Susan Neiman publicou um livro em 2019, com o título Aprendendo com os alemães, no qual relata sua mudança para a Alemanha para entender como a sociedade do país aderiu a Hitler e como superou o trauma do nazismo. Neiman se dedicou a estudar o papel do mal na política, algo que, durante um bom tempo, somente Hannah Arendt se dispôs a fazer. Susan Neiman estava interessada, em particular, no processo muito alemão denominado Vergangenheitsaufarbeitung, em português seria algo como passando o passado a limpo. Ela observou de perto como os alemães ajustaram suas contas com a história criminosa em que embarcaram nos doze anos entre 1933-1945. Algo que nunca fizemos em relação aos crimes da ditadura.

Nesse período de reencontro consigo e exorcismo do mal que a havia acometido, a sociedade alemã desenvolveu uma política democrática, marcada por uma síntese local entre mudança e continuidade e de convivência tolerante entre adversários, muitas vezes unidos em grandes coalizões. A Alemanha se acostumou aos governos de coalizão e desenvolveu uma rara capacidade de negociação para formar maiorias parlamentares. Daí, a longevidade de seus governantes mais bem sucedidos, como Adenauer, Kohl e Merkel.

Na reconstrução, a mudança foi mais intensa, mas não a ponto de romper a continuidade, sobretudo de resgate do legado da República de Weimar, esmagada com a chegada de Hitler ao poder, que experimentou a primeira grande coalizão, entre partidos rivais, de 1919 a 1933, quando os social-democratas se aliaram a dois partidos liberais e ao então influente partido católico conservador.

Nos momentos iniciais, a redemocratização foi conduzida por uma coalizão conservadora, entre partidos afins, e longeva, liderada por Konrad Adenauer, que permaneceu oito anos no poder, de 1949 a 1957. Em 1966, com a queda de Ludwig Erhard, a maioria só foi possível mediante uma grande coalizão entre os liberal-conservadores da CDU-CSU, a mesma união de Angela Merkel, com o SDP social-democrata, com Kurt Kiesinger como chanceler. A negociação foi conduzida por Kiesinger, pelos conservadores, e Willy Brand pelos social-democratas. Angela Merkel recorreu duas vezes a grandes coalizões com o SDP, inclusive a que apoiou seu último período como chanceler. Agora, o SDP encabeça uma coalizão com os Verdes, com os quais tem muitas proximidades, e com os liberal-demcratas, do FDP, com o qual Scholz compartilha a visão fiscal mais conservadora.

Foi uma negociação relativamente rápida e estritamente programática, embora dura em determinados momentos, que definiu com clareza a prioridade do novo governo: combater a pandemia, consenso geral; aumentar o salário mínimo, dogma social-democrático; acelerar a trajetória de abandono do carvão, simultaneamente expandindo a energia renovável para 80% da matriz até 2030, e legalizar a maconha, princípios essenciais do programa Verde; sem aumentar impostos, o dogma dos liberal-democratas. Os dois líderes verdes estarão nos ministérios-chave para uma política climática mais agressiva e ambiciosa. Robert Habeck ficou com o ministério da Economia e do Clima, e Annalena Baerbock, com Relações Exteriores, assumindo como a primeira mulher a ocupar o posto. O líder liberal, Christian Lindner, fará a gestão fiscal, no ministério das Finanças. Tudo detalhado em um documento de 117 páginas subscrito pelos três partidos.

O Brasil terá que aprender algumas lições com os alemães, porque precisará reconstituir seu sistema partidário, esfacelado nas últimas eleições, o que provocou a miniaturização das bancadas e comprometendo a governabilidade. Terá que reconstruir o presidencialismo de coalizão, em novas bases. A sociedade brasileira é irredutível a duas maiorias homogêneas. É desigual e diversa demais para isto. Sua heterogeneidade estrutural não é um traça "sanável", até porque não é uma patologia. É um elemento constitutivo de nossa estrutura social, em um território de grandes dimensões e diversidade. Patológicas e sanáveis são sa desigualdade e a pobreza. A coalizão é o imperativo político que nasce dessa estrutura social heterogênea.

As eleições de 2018 marcaram a ruptura do padrão de formação e governo e oposição, com uma disputa bipartidária pela presidência e outra multipartidária para capitalizar os partidos como parceiros de coalizões parlamentares de apoio e oposição ao governo. O PSDB enfrenta um risco terminal e não dá sinais de que será capaz de superá-lo em 2022. O PT corre o risco de caudilhização, se não abrir de forma real e consistente a renovação de lideranças no topo e a qualificação eleitoral de alternativas para levar adiante sua vocação para a disputa presidencial. O DEM, que agiu como pivô das coalizões de FHC, reconheceu sua própria falência, rendeu-se à direita amorfa do PSL e fundiu-se na União Brasil, que ainda terá que provar sua discutível viabilidade político-eleitoral. O MDB ficou anêmico e tem que buscar uma infusão de vigor novo para recuperar sua vocação parlamentar e se reapresentar como pivô de coalizões sustentáveis, como foi nos governos do PT. O PSD tem que crescer e se apresentar em 2022, para se firmar seja como partido capaz de substituir o PSDB no eixo da disputa presidencial, ou como possibilidade de atuar como pivô de coalizões de centro-direita, no lugar do DEM.

A reconstituição do sistema partidário, a recuperação da capacidade de coalizões, renovando o presidencialismode coalizão, são essenciais à revitalização da democracia no Brasil e à governabilidade estável. O principal instrumento que pode promover esse realinhamento partidário será a proibição das coalizões proporcionais, vitaminada pela cláusula de barreira. É a bala de prata para reduzir a hiperfragmentação partidária a um patamar que permita coalizões administráveis. Mas, liderança política e candidaturas eleitoralmente viáveis são indispensáveis a essa tarefa.

Seria um grande avanço se este processo seguisse a ideia de "reconstruir melhorando". As lideranças políticas dos vários partidos, particularmente os candidatos presidenciais e os parlamentares com assento praticamente dado nos colégios de líderes deveriam mirar no exemplo dos alemães. Aprender com eles a negociar coalizões firmes, com clareza das prioridades e fundadas na conciliação de princípios partidários que marcam a diferenciação entre as legendas. Seria um bônus para as gerações futuras, se passassem o passado a limpo, ajustando contas com o passado e o presente autoritários que tanto nos infelicitaram.

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