O documentário "Pray Away" (Netflix), abordado em reportagem nesta Folha ("Ex-ex-gays abalam movimento pró-’cura gay’ nos EUA, mas braço brasileiro segue forte", 4/9), revela uma realidade que gostaríamos que já estivesse superada no Brasil.
Através de depoimentos de ex-líderes do movimento Exodus International, principal ministério de promoção de "cura gay" dos EUA por quase 40 anos e com presença em 17 países, a produção relata um dos episódios mais nefastos para pessoas LGBTQIA+ naquele país: cerca de 700 mil pessoas experimentaram alguma forma de "terapia de reversão sexual" através de iniciativas religiosas. No documentário tomamos conhecimento de uma organização que transmitiu formas de perceber e lidar com a sexualidade que ainda são vigentes e replicadas em diversas partes do mundo.
Aqui, na atuação de ministérios como Exodus Brasil, entre outros, pode-se ver como o tema das "terapias de reversão" está longe de ter sido equacionado pela resolução 01/99, do Conselho Federal de Psicologia (CFP), que já completou 20 anos de vigência. Esta determina que não cabe a profissionais da psicologia o oferecimento de qualquer tipo de prática de reversão sexual, uma vez que a homossexualidade não é considerada patologia, doença ou desvio. No entanto, psicólogos defensores de tais "terapias", especialmente do meio evangélico, contestaram a resolução na Justiça. Em abril de 2020, o Supremo Tribunal Federal decidiu manter a normativa e a competência do CFP para orientar seus profissionais.
Esses psicólogos "reversionistas" representam bem o modo como grupos evangélicos têm lidado com o tema da diversidade sexual e de gênero em suas comunidades. Indicam apenas a ponta do iceberg de uma realidade que permanece submersa na experiência da maioria das pessoas LGBTQIA+ evangélicas e de suas famílias.
Se é verdade que a psicologia no Brasil tem feito esforços para se alinhar a investigações científicas sobre sexualidade e orientação sexual e orientar seus profissionais a respeito, também chegam a nós pessoas LGBTQIA+ que narram experiências de tentativas de "reversão sexual" vividas em suas igrejas, com psicólogos envolvidos nesse processo.
Centenas de igrejas, ministérios e comunidades "terapêuticas" em todo o país continuam usando a prerrogativa de sua liberdade religiosa para ofertar a possibilidade de mudança da sexualidade. Sem base científica e comprovadamente ineficaz, ela causa danos muitas vezes irreparáveis à saúde mental de pessoas LGBTQIA+ o recorrerem ao apoio de suas lideranças religiosas por imaginarem sua sexualidade ou gênero errado ou desordenado.
Profissionais "reversionistas" defendem que "uma pessoa homossexual infeliz com sua sexualidade tem o direito de procurar ajuda", mas este suposto acolhimento guarda, na verdade, uma perniciosa armadilha: quem procura apoio está assolado por dúvidas sobre si, sobre sua fé e com medo de rompimentos na família e na comunidade religiosa. O discurso de ajuda pode soar esperançoso, mas é extremamente violento. Por que tais profissionais não questionam a estrutura de exclusão a que pessoas LGBTQIA+ estão submetidas, contexto onde emerge sua sensação de inadequação, angústia e pedido de mudança?
Não é por acaso que países como EUA, Canadá, Alemanha, Portugal, México e Chile, para citar alguns, vêm discutindo e tomando decisões pelo banimento total dessas práticas, inclusive por parte de grupos religiosos. A própria ONU tem alertado sobre a interferência na integridade pessoal e autonomia de pessoas LGBTQIA+, sendo o modelo essencialmente discriminatório e violador dos direitos humanos.
Cabe-nos perguntar se continuaremos sendo negligentes especialmente com a vida de nossos adolescentes e jovens, que em sofrimento recorrem a suas lideranças religiosas. Estas, assumindo o discurso da "cura", os encaminham a práticas de reversão sexual, provocando ainda mais sofrimento.
Urge uma ação conjunta do Estado, da comunidade científica, da sociedade civil e das lideranças religiosas conscientes desse mal para combater tais práticas até que deixem completamente de existir.
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