É o pão de cada dia da social-democracia. A convite da Fundação Friedrich Ebert, associada ao SPD, partido alemão de centro-esquerda, o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva e os dirigentes da Fundação Perseu Abramo viajaram à Europa.
Reuniram-se em Berlim com o presidente da instituição, Martin Schulz, conhecido por seu engajamento ao lado do brasileiro, e em Bruxelas com o bloco de partidos da centro-esquerda no Parlamento Europeu, historicamente atento à América Latina. Na França, Lula regressou à Sciences Po, onde recebeu o título de honoris causa dez anos atrás, e encontrou-se com Anne Hidalgo, prefeita de Paris e presidenciável do agora nanico Partido Socialista, outro parceiro histórico do PT no continente.
Até aí, nada de surpreendente na agenda do ex-presidente, que frequenta os círculos políticos europeus desde os anos 1980, quando disputava a atenção das lideranças com outro sindicalista, o polonês Lech Walesa.
As agendas mais políticas, como o encontro com o discreto Olaf Scholz, líder da SPD e primeiro-ministro designado da Alemanha, e a audiência com Pedro Sánchez, premiê e líder dos socialistas na Espanha, também são esperadas para o ex-chefe do Executivo de uma potência média e líder do maior partido social-democrata do Sul Global, junto com o Congresso Nacional Africano, da África do Sul.
Mas, nesta quarta-feira (17) de manhã, o presidente francês Emmanuel Macron transformou a viagem protocolar em triunfo diplomático. Recebido com protocolos arrojados incomuns para uma visita não oficial, Lula chegou ao Palácio do Eliseu para uma conversa de 30 minutos que se estendeu por mais de uma hora.
Fonte da Presidência francesa explicou que "Macron considerou Lula uma personalidade com a qual era pertinente ele se encontrar". Na cuidada linguagem macronista, o "pertinente" é a palavra-chave.
O francês é um globalista solitário, que se elegeu prometendo colocar o país no centro da arena internacional, mas teve de aprender a conviver com lideranças em declínio, como Angela Merkel, ou em estado de transe permanente, caso de Donald Trump.
Principal formulador do megapacote de investimentos verdes na África do Sul anunciado durante a recém-encerrada COP26, Macron quer usar a política ambiental para unir em torno do projeto europeu um novo bloco de países do sul. Potência amazônica, democracia em reconstrução e liderança regional, o Brasil idealizado por Lula na Sciences Po, onde Macron estudou, seria uma peça-chave na estratégia internacional de um eventual segundo mandato do presidente francês.
A proximidade com Lula também ajuda o europeu em suas ambições eleitorais. O petista goza de prestígio considerável entre o eleitor francês de esquerda, que Macron precisa a todo custo mobilizar para fugir da armadilha da abstenção em um provável segundo turno contra um candidato de extrema direita nas presidenciais de 2022.
A aura do ex-presidente brasileiro aproxima o mandatário dos apoiadores de Hidalgo e do esquerdista Jean-Luc Mélenchon, do mesmo jeito que Barack Obama —ex-presidente de quem Macron se aproximou na campanha de 2017— o ajudou a consolidar as suas credenciais entre os eleitores centristas.
Todos esses fatores estimularam Macron a enforcar o protocolo diplomático, mas nada contribuiu mais para o encontro desta quarta do que o vandalismo diplomático de Jair Bolsonaro. Foi o presidente brasileiro que, em 2019, trocou uma audiência com o poderoso chanceler francês por uma ida ao cabeleireiro e enterrou o acordo entre a União Europeia e o Mercosul.
Nos meses seguintes, as piadas homofóbicas de seus apoiadores sobre Macron respingaram nas redes sociais europeias, e o deputado federal Eduardo Bolsonaro (PSL-SP), filho do presidente, aproveitou os protestos dos coletes amarelos para chamar o francês de idiota.
O ministro da Economia, Paulo Guedes, foi ainda mais longe e agrediu com insultos misóginos a primeira-dama Brigitte Macron. A vingança é um prato que se come frio, de preferência acompanhado por um bom vinho francês.
No final das contas, o contraste entre o triunfo diplomático de Lula no espaço franco-alemão e a viagem oficial de Bolsonaro a países árabes não poderia ser mais gritante.
Na indiferença da humanidade, Bolsonaro e Guedes passaram os últimos dias discutindo nióbio e grafeno em palácios conhecidos por abrigar autocratas decadentes e membros de honra da lista dos Paradise Papers. Para os investidores, a mensagem é clara: o Brasil entra no ano eleitoral em uma situação de Presidência bicéfala, em que um candidato dialoga com o mundo enquanto o presidente delira no deserto.
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