É um dos grandes filmes do ano. Falo de "Identidade", escrito e dirigido por Rebecca Hall, a partir do romance de Nella Larsen, "Passing". Está disponível na Netflix.
É a história de duas amigas de infância, Irene —papel deTessa Thompson, notável— e Clare —Ruth Negga, idem—, que se reencontram na idade adulta em Nova York.
São ambas mulheres negras, mas Clare —nome irônico— é mais "clara" do que Irene, o que lhe permite "passar" por branca e ter todos os privilégios correspondentes na sociedade americana da década de 1920.
E ela "passa": conhece um homem branco, de impecáveis credenciais racistas, e vive a sua fantasia como branca de cabelos loiros. O marido, por brincadeira, diz que a conheceu branquíssima e que ela, com a idade, foi ficando mais escura. Mas ele sabe que ela não é negra retinta e, por isso, se permite a brincar com o assunto.
Fato: nessa fantasia, existiram momentos tensos, como o em que Clare foi mãe. Mas a criança, sabemos pela boca aliviada de Clare, não tem traços negros. Foi um risco, que Clare não tenciona correr novamente.
Apesar disso, Clare inveja Irene. Desde logo, inveja o fato de Irene não viver a mentira —tem um marido negro, dois filhos negros, vive no Harlem. Irene é feliz e sente-se segura, ou pela menos Clare acredita que sim.
É também uma ilusão, que o reencontro das amigas vai desfazer. A felicidade e a segurança de Irene é apenas um solipsismo autoimposto para não lidar com a realidade do racismo.
Mesmo nas tarefas do cotidiano, Irene mantém o olhar baixo, o chapéu bem enfiado na cabeça, como se precisasse dessa espécie de máscara, de escudo, de véu, para se proteger de um mundo hostil.
O filme de Rebecca Hall é uma obra inteligente e sutil sobre a perversidade do racismo.
Tradicionalmente, essa perversidade é apresentada nas suas encarnações mais clássicas —escravidão, segregação, discriminação, violência etc.
Rebecca Hall muda de ângulo e opta pela experiência subjetiva dessa perversão, mostrando como a internalização de uma suposta inferioridade destrói os indivíduos negros.
Ninguém escapa a esse miasma moral. Clare é o mais óbvio destroço: a sua barganha faustiana tem todos os contornos da tragédia, sobretudo quando ela tenta desfazer os termos desse contrato pelo resgate da sua identidade.
Mas Irene também participa dessa tragédia. Quando a conhecemos, já a vemos em sufoco —físico, mas também metafísico. É um sufoco que se prolonga ao longo do filme —e que será eterno depois da sequência final, um "tour de force" de revolta e ambiguidade.
Décadas atrás, um filósofo francês popularizou o conceito de "má-fé". É a forma como negamos a nossa liberdade pela adoção de papéis inautênticos, socialmente convenientes, mas destrutivos da nossa personalidade.
O filme de Rebecca Hall mostra como o racismo alimenta essa "má-fé" —essa sabotagem interior que transforma as vítimas nos seus próprios carrascos.
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