Um Plano Diretor Estratégico (PDE) consiste em uma lei municipal com diretrizes para o desenvolvimento urbano e rural de uma cidade como São Paulo. Estão ali comandos essenciais para políticas públicas que impactam diretamente na vida dos cidadãos: mobilidade urbana, uso e ocupação de solo, uso social da propriedade, preservação do patrimônio histórico, cuidados com o meio ambiente, entre outros.
Maior cidade do hemisfério Sul, São Paulo possui um plano diretor avançado em termos urbanísticos, premiado e citado como referência por outras metrópoles. Aprovado em 2014, durante o governo de Fernando Haddad (PT), a Lei 16.050/14 previa, desde sua vigência, uma revisão para o ano de 2021. Às vésperas de eleições para prefeito e vereadores, o tema é um dos principais alvos de debates entre os candidatos.
Breve histórico
O primeiro Plano Diretor aprovado em São Paulo data de 1971, sendo revisado automaticamente em 1988. Naquele mesmo ano, uma nova peça seria escrita. À época, o Brasil vivia o período de ditadura civil-militar (1964–1985). A influência repressora dos militares impediu que o programa tivesse transparência. Ele foi aprovado de forma impositiva, sem qualquer participação da sociedade civil.
“São Paulo teve seu primeiro Plano Diretor aprovado em 1971 e não foi um documento originado de debate democrático: naquele tempo de regime militar, as câmaras aprovavam tudo o que o Executivo enviava. Teve o segundo Plano em 1988, aprovado sem debate e por decurso de prazo”, destaca o texto do quarto PDE, de 2002; aprovado durante o governo da prefeita Marta Suplicy (PT).
Desse modo, o primeiro PDE como construção cidadã data de 1988, aprovado pela prefeito Jânio Quadros (PDC). O texto, então, fora revogado e substituído em 2002. Durante a gestão da então petista Marta Suplicy, foi notável o avanço no texto, em complexidade e participação popular. A aprovação passou por intervenção de conselhos e por audiências públicas, com a finalidade de ampliar a característica democrática do projeto.
O Plano Diretor de 2014
A Constituição Federal prevê revisões em planos diretores a cada dez anos. O prazo, em São Paulo, expirou em 2012, sem que o então prefeito, Gilberto Kassab (PSD), ou a legislatura vigente, tomassem a iniciativa. A função então foi delegada ao próximo prefeito Haddad, que enviou logo no seu primeiro ano um projeto para a Câmara de Vereadores. O texto foi aprovado no segundo ano do mandato, após um extenso processo participativo.
A relatoria do projeto ficou por conta do vereador, arquiteto e urbanista Nabil Bonduki (PT). “Nenhum plano, assim como nenhuma lei, pode efetivamente ser implementado se as entidades da sociedade civil, os cidadãos e os próprios agentes públicos desconhecem seu conteúdo, as razões que levaram à sua promulgação e os resultados que se esperam da sua publicação”, disse.
“Trabalhei em tempo integral durante nove meses, em conjunto com minha equipe, com a colaboração de vereadores e em harmonia com o governo municipal, para aperfeiçoar a proposta original do Executivo, com rigor técnico e através de um exemplar processo participativo”, completou Bonduki.
De lá para cá, houve alguns avanços, como o adensamento nas regiões centrais e o estabelecimento de áreas de proteção nos extremos da cidade. Projetos como o federal Minha Casa Minha Vida se adaptaram à realidade do PDE, e buscaram as construções no centro, ou próximas aos eixos de transporte público. Na Sé, por exemplo, o número de novos apartamentos cresceu 105% entre 2012 e 2017.
O que propõem os principais candidatos?
O PDE de 2014 possui ampla aceitação, até mesmo por diferentes espectros políticos. Com a aproximação do primeiro turno e sem mais debates entre candidatos por conta da pandemia de covid-19, a RBA reúne as principais propostas dos candidatos. Foram selecionados os seis candidatos melhor posicionados na pesquisa XP/Ipespe do dia 8 de outubro. São eles: Celso Russomano (Republicanos); Bruno Covas (PSDB); Guilherme Boulos (Psol); Marcio França (PSB); Arthur do Val (Patriota); e Jilmar Tatto (PT).
Celso Russomano (27%)
O tema do plano diretor aparece de forma escassa, em apenas um parágrafo. O termo “plano diretor” é citado apenas uma vez.
“Refazer o plano diretor de logística de abastecimento e trânsito por meio de bicicletas e patinetes (bicicletas, patinetes e outros meios alternativos de transporte) na cidade de São Paulo, conciliando o traçado da cidade com o acesso aos terminais modais, fluxos prioritários de usuários em face do trajeto de trabalho e de lazer e, também, da necessária disposição de estruturas de estacionamento de bicicletas e patinetes – áreas de descanso e trechos de intersecção com o tráfego dos demais veículos. É preciso que a política de intermodalidade avance para além dos desenhos de ciclovias sem uso e malcuidadas.”
Bruno Covas (22%)
O atual prefeito tucano, que concorre à reeleição, não cita diretamente nenhuma vez o PDE em seu programa de governo. Entretanto, temas que perpassam o PDE estão diluídos em seu programa. Um dos destaques, no quesito mobilidade, apresenta a ideia de “Desenvolver soluções urbanísticas que incentivem a descentralização dos centros econômicos e comerciais, bem como a oferta de serviços públicos, sempre associados à ampliação da conexão com as redes de mobilidade”.
Um dos centros das propostas é a parceria entre poder público e iniciativa privada, que aparece em temas ligados ao PDE. “Expandir a oferta de moradias dignas, lançando mão de instrumentos modernos como as parcerias com a iniciativa privada. Em especial, ampliar investimentos em urbanização de favelas e requalificação de moradias precárias, com fortalecimento das comunidades locais.”
O programa de Covas é mais difuso, apresenta uma série de ideias, sem pontos práticos de ação. Justamente por isso, as ideias relacionadas ao PDE não estão discriminadas de forma clara. Um exemplo é a meta de “desenvolver soluções urbanísticas que incentivem a descentralização dos centros econômicos e comerciais, bem como a oferta de serviços públicos, sempre associados à ampliação da conexão com as redes de mobilidade”.
Guilherme Boulos (10%)
O candidato de esquerda mais bem colocado nas pesquisas possui grande experiência como líder de movimento social junto ao MTST. Ao lado de Boulos, a candidata a vice na chapa é a ex-prefeita Luiza Erundina, que desenvolveu políticas públicas de excelência em sua gestão (1989-1993). Estas são algumas razões pelas quais o candidato do Psol é um dos que mais aborda a questão do PDE, de forma detalhada e com uma grande variedade de propostas.
O PDE aparece diretamente três vezes no programa de Boulos/Erundina. Além disso, propostas ligadas ao PDE aparecem muitas vezes diluídas nas 62 páginas. Existe um capítulo especial para o tratamento de questões ligadas ao planejamento urbano, que se relacionam diretamente com o Plano Diretor.
Conforme dito, são muitas propostas que valeriam o detalhamento. Os links direto para os programas de governo estão no pé desta reportagem. Para fins jornalísticos, será elaborado, nas linhas a seguir, um breve resumo que não contempla a complexidade dos projetos.
No eixo “Proteção e Manutenção de Áreas Verdes”, o PDE aparece de forma clara. A proposta consiste em manter e ampliar o alcance das políticas previstas em 2014. “Arborizar a cidade, especialmente das periferias, visando a redução das ilhas de calor, melhora da qualidade do ar e da saúde da população; Combater a especulação imobiliária nas zonas urbanas e de proteção ambiental — e fazer valer os instrumentos do plano diretor; Manutenção das áreas verdes já existentes, como praças e parques públicos;”, entre outros.
Já o trecho de “Planejamento Territorial e Habitacional” é o mais completo. Estão presentes iniciativas para áreas rurais e urbanas, com uso e ocupação inteligente do solo. “A manutenção da zona rural, instituída pelo Plano Diretor, é essencial para a produção de alimentos e de água e para a manutenção de paisagens diversas. São territórios atacados pelo mercado imobiliário e por loteamentos clandestinos. Entendendo que o planejamento territorial serve para resolver todos esses problemas, e não, como tem sido feito atualmente, apenas para gerar grandes negócios imobiliários”, resume.
Marcio França (8%)
O ex-governador do PSB não traz em seu programa de governo citações diretas ao PDE. Entretanto, existem propostas que versam de temas relativos ao desenvolvimento da cidade. Existe um capítulo intitulado “Planejamento, Desenvolvimento Urbano e Habitação”, que trata de forma mais específica temas relacionados ao PDE. Alguns destaques são:
“Moradias. Regularização, Aquisição de Unidades Prontas e Construção de Novas Unidades: Programa de assistência técnica para autoconstruções em áreas de Interesse Social e regularização fundiária de propriedades em áreas seguras com mais de cinco anos de uso em ZEIS, com taxas sociais de transição. Estratégia de habitação social em que unidades de diferentes valores são integradas no mesmo projeto e na qual beneficiados mais afluentes ajudam a financiar as propriedades de menor renda, facilitando assim aproximação das áreas com mais emprego.”
“Programa Planos Urbanos Integrais: Desenvolvimento de projetos específicos e prioritários para cada uma das 8 áreas de desenvolvimento do Urbanismo Social realizando a integração urbana de toda cidade a partir das áreas mais pobres, as periferias, por meio do desenvolvimento da rede de infraestrutura, espaços e equipamentos públicos junto à habitação e ao desenvolvimento socioeconômico. Nossa estratégia urbana consiste em realizar mais investimentos nos territórios e para as populações que mais precisam, tanto por princípios como também por retorno no capital investido para toda sociedade.”
Arthur do Val (Mamãe Falei) (3%)
O youtuber de direita e deputado estadual, mais conhecido por seu vínculo com o Movimento Brasil Livre (MBL), tem um capítulo conciso sobre a revisão do PDE. Arthur defende o fortalecimento do Plano Diretor e apresenta propostas relevantes no início, com análises fundamentadas e críticas interessantes. Entretanto, escorrega no final, com uma fala elitista e controversa.
“Com sua baixa densidade, São Paulo ainda permite aos ricos se separarem geograficamente dos pobres isolando os nas periferias da cidade. Sempre vale lembrar que o convívio entre diferentes classes sociais no mesmo local favorece não só a mobilidade urbana, mas o desenvolvimento social e cultural das famílias menos abastadas ao conviverem com hábitos mais sofisticados.”
Para além do descaso com a intensa e relevante produção cultural periférica, o youtuber defende o transporte intermodal e o adensamento na região central, tal como já previsto pelo PDE de 2014.
“São Paulo enfrenta dois problemas latentes em termos de urbanismo e mobilidade: o trânsito, que nos faz perder cerca de 50 bilhões de reais por ano, segundo levantamento da FGV; o péssimo conceito urbanístico adotado nas últimas décadas que priorizou os carros em detrimento das pessoas, tornando a cidade quase hostil aos pedestres. Felizmente, parte do problema vem sendo solucionado nos últimos anos com o novo plano diretor que prioriza calçadas mais largas, mais amigáveis aos habitantes da cidade e fachadas ativas que aumentam o movimento das ruas, (conceito adotado em praticamente todas as principais cidades europeias) tirando as enormes muralhas que separam a cidade do pedestre.”
Também vale a análise histórica do uso e ocupação do solo, presente no programa.
“É bom lembrar que os planos de zoneamento de 1957 e 1972 tinham, literalmente, como objetivo impedir São Paulo de crescer e se adensar e isso resultou é claro! no afastamento dos mais vulneráveis do centro da cidade. Para se ter uma ideia, o plano de 1952, do então prefeito Adhemar de Barros, não permitia unidades habitacionais com menos de 35m² pois ‘essas seriam destinadas à fornicação’ e isso não era compatível com a criação de famílias, que era o desejado pelo poder público para a cidade de São Paulo. Não se enganem: São Paulo hoje é a metrópole menos densa do mundo.”
Jilmar Tatto (3%)
O petista aborda diretamente temas relacionados ao PDE. Inicialmente, ele destaca o “modo do PT de governar”, que deixou como legado os dois últimos – e mais completos – planos diretores. Em diferentes oportunidades, o programa destaca a participação popular por meio de conselhos e audiências para elaboração de políticas públicas efetivas, com direta participação dos cidadãos.
“Criamos os CEUs na educação, o Bilhete Único nos ônibus urbanos, os mutirões para construção de habitações populares e incentivamos a cultura nas periferias. Projetamos uma nova cidade para o século XXI, sobretudo no governo Haddad, de 2013 a 2016. Ouvindo todos os setores da sociedade, aprovamos o Plano Diretor da cidade, premiado internacionalmente. Criamos uma grande referência urbanística.”
Então, no capítulo destinado ao Meio Ambiente, o programa de Tatto versa novamente sobre o PDE.
“O Plano Diretor Estratégico (PDE), elaborado pela gestão Haddad, trouxe importantes avanços para a agenda ambiental de São Paulo, integrando as demandas ambientais ao desenvolvimento da cidade. O PDE ampliou em 53% as Zonas Especiais de Proteção Ambiental e instituiu o Fundo Municipal para Parques, visando o financiamento da implantação de parques e o incentivo à conservação de áreas verdes. Diversas outras ações das gestões petistas contribuíram para a sustentabilidade ambiental da cidade, em especial nas áreas da gestão dos resíduos sólidos e mobilidade urbana.”
O reforço do atual PDE, com estabelecimento de diretrizes para aplicabilidade norteiam o projeto petista. Algumas propostas diretas são: “Definir indicadores e metas de sustentabilidade na revisão do Plano Diretor e dos Planos Regionais Estratégicos das Subprefeituras; Fortalecer o processo de planejamento ambiental participativo e gestão ambiental por subprefeituras; Reduzir a tributação dos edifícios verdes, projetados de acordo com os princípios de sustentabilidade do Plano de Sustentabilidade Municipal”.
Em Habitação, novamente o PDE volta a ser protagonista com propostas claras. “A média anual de investimentos no quadriênio 2013-2016 em Habitação foi de R$ 782,3 milhões; na gestão Doria/Covas (triênio 2017-2019) foram investidos R$ 487,1 milhões por ano. O Fundurb, no entanto, aumentou consideravelmente os seus recursos com o ajuste do cálculo da Outorga Onerosa do Direito de Construir (OODC), realizado na revisão do Plano Diretor Estratégico (PDE) em 2014, podendo captar mais recursos do setor imobiliário para investir na infraestrutura urbana e em habitações de interesse social (HIS). Diante da paralisia do Governo Federal e com maiores recursos no Fundurb – 30% dos recursos devem ser destinados, obrigatoriamente, para a política habitacional –, era de se esperar um maior investimento na cidade de São Paulo pela gestão Doria/ Covas, o que não se concretizou na prática.”
“Ainda na gestão Haddad, quando foi criado o Departamento de Controle da Função Social da Propriedade, com estrutura e equipe condizente, mais de 1.200 imóveis foram 107 notificados por não cumprirem suas funções sociais. O Departamento, que funcionava com plenas condições para dar seguimento à política implementada, foi enterrado pela gestão Doria, inviabilizando toda e qualquer ação para fins de desapropriação. Uma política que deveria ser de Estado foi sepultada pelos representantes da especulação imobiliária, que encontraram as portas abertas na gestão tucana. O desmonte refletiu diretamente no alcance da política. Enquanto nos dois últimos anos da gestão Haddad foram notificados em média 536 imóveis ociosos, em 2017 apenas 59 foram notificados e em 2018, somente 8.”
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