Duas narrativas pautaram o debate brasileiro nesta era Bolsonaro. As duas vêm murchando como um balão furado, nos últimos tempos.
Uma delas, governista, conhecida de todos, sempre apostou na versão de Bolsonaro como um Capitão Nascimento capaz de purificar o sistema e destruir o “mecanismo”, como certa vez me explicou um sujeito bastante animado em um desses eventos empresariais.
A narrativa perdeu sua última camada de verniz por estas semanas. Bolsonaro se afasta dos radicais, consolida a base com o centrão, assiste jogo com o ministro Dias Toffoli, faz as pazes, pela enésima vez, com Rodrigo Maia, ganha afagos de Renan Calheiros e é cortejado pelos partidos tradicionais para uma eventual filiação.
A nossa líder fascista de história em quadrinhos, Sara Winter, jogou a toalha. Salpicaram ativistas na internet dizendo “chega”. Muitos deles foram banidos da internet (de mentirinha, claro) por defender o tal “cabo e soldado” que iria fechar a Suprema Corte.
A segunda narrativa apostou suas fichas na tese do abismo. A ideia saborosa de que havíamos nos tornado uma República de Weimar dos anos 1930, que havia em curso uma conspiração fascista “subterrânea” para terminar de vez com nossa democracia.
No fim a coisa esfriou. Leio nesta Folha que “Bolsonaro abriu mão da postura de embate para viabilizar o governo”. Bingo. Viabilizar o governo é isso. Negociar, ceder, fazer acordos. “Politics as usual.” A democracia e sua capacidade de moderar e fazer exatamente o que diz a Folha: induzir a turma a abrir mão, lá pelas tantas, de sua “postura de embate”.
Bolsonaro foi se revelando, com o tempo, o que sempre foi. Um político muito mais tradicional do que a boa parte da crônica sempre fez crer. Seu líder na Câmara é Ricardo Barros, um Vermeer da velha política brasileira. Seu ministro mais barulhento despacha de Washington e o país toca a vida em uma animada campanha eleitoral.
Cereja do bolo, nosso “Hugo Chávez brasileiro”, como li de um ilustre e sempre citado cientista político americano, indica um juiz garantista (seja lá o que for isso), saudado pela OAB e pelo mundo jurídico “do bem”, para o Supremo Tribunal Federal.
Alguma dessas coisas me surpreende? Nem um pouco. Como muitas vezes escrevi aqui, raspando um pouco a tinta, nosso “outsider” sempre foi mais “insider” do que quisemos acreditar. E nossa democracia mais capaz de produzir os devidos enquadramentos.
No mais, eis aí Bolsonaro, um político errático (ou “pragmático”, se alguém preferir), sem um projeto para o país, baixa convicção em política econômica e cuja “agenda conservadora” nunca passou de um punhado de frases de efeito.
As narrativas extremas erraram ao julgar o Brasil pela epiderme da política. Pela lógica das guerras digitais a qual pertencem e ajudam a alimentar. Elas são o feijão com arroz de nossas democracias polarizadas. Vão continuar por aí, ofendendo e espalhando ódio, apenas com menos “sex appeal”.
Seu problema sempre foi o mesmo: elas distraem o país das questões que realmente importam. Entulham o debate público de toxina ideológica. Seu resultado é a paralisia. O diálogo de surdos da democracia atual. E mais objetivamente, no Brasil de hoje, a perda de foco sobre a pauta de reformas que o país precisa enfrentar.
A pergunta a ser feita é a seguinte: o país retomará alguma objetividade agora que o fim do mundo não veio e há um momento de relativa distensão?
Rodrigo Maia garante que o Congresso mantém o ímpeto reformista, mas a verdade é que temos hoje menos consenso em torno da reforma tributária do que imaginávamos ter no início do ano.
A reforma administrativa avançou muito pouco e sequer descobrimos um jeito de financiar um óbvio programa de transferência de renda sem quebrar a regra do teto. Se o país decidisse por um momento sair do modo procrastinador, deveria exigir que o Congresso cumpra o aceno feito nesta semana de que irá cancelar o recesso de verão e trabalhar nas reformas.
No fundo, é disto que o país precisa. Menos conversa fiada e uma dose cavalar de senso de urgência.
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