segunda-feira, 12 de outubro de 2020

New York Times questiona trabalho de sua repórter sobre terrorismo, FSP

 Diogo Bercito

A repórter Rukmini Callimachi, do New York Times, se firmou nos últimos anos como uma das grandes especialistas da imprensa em terrorismo. Foi  indicada ao consagrado prêmio Pulitzer por suas investigações sobre as organizações radicais al-Qaida e Estado Islâmico. Virou uma das estrelas daquele jornal americano. Foi tida como um novo modelo de repórter, conectado às redes sociais e capaz de produzir um variado material audiovisual em diversas plataformas.

Até que, no fim de setembro, a polícia canadense acusou um homem conhecido como Abu Huzayfah de ter mentido sobre ter feito parte do Estado Islâmico. Huzayfah é um dos personagens principais do podcast Caliphate, do New York Times, e Callimachi baseou parte de sua premiada narrativa na história dele — que, ao que parece, era falsa. Caíram por terra, assim, algumas das detalhadas descrições de Callimachi sobre como funcionava aquele auto-proclamado califado.

A notícia não ruiu apenas o podcast da repórter. Com as informações divulgadas desde então, ficou evidente que Callimachi, assim como seus chefes, estavam cientes da fragilidade do depoimento de Huzayfah. Ainda assim, decidiram lançar o projeto em abril de 2018, pelo qual colheram loas. Colegas e ex-colegas foram a público, ademais, para questionar o trabalho de Callimachi. O New York Times decidiu investigar algumas das reportagens da jornalista. No domingo (11), o próprio jornal publicou um artigo sobre os problemas no trabalho.

“Ela era tida como  uma estrela — uma posição que a ajudou a sobreviver uma série de questionamentos feitos nos últimos seis anos por colegas no Oriente Médio”, segundo o texto do New York Times. Ela foi criticada por um de seus tradutores, por exemplo. Foi acusada, também, por ter coletado milhares de documentos no Iraque e levado embora. Foi dito que sua abordagem em relação ao terrorismo resvalava no sensacionalismo. E veio à tona um episódio do ano passado, em que especialistas em terrorismo provaram que os documentos usados por Callimachi em outra matéria eram falsos. Veja abaixo, em inglês, alguns dos tuítes desmentindo a apuração dela.

Além do New York Times, outros grandes veículos americanos têm acompanhado a crise em torno do trabalho de Callimachi. O Washington Post, por exemplo, publicou também um longo artigo destrinchando as inconsistências na apuração dela. Mas a questão não é apenas sobre prática jornalística. O trabalho de um repórter como Callimachi tem consequências na elaboração de políticas. Como lembra o New York Times, a apuração dela foi citada por autoridades americanas avessas à migração de muçulmanos aos Estados Unidos. Os textos de Callimachi também influenciaram o debate no Canadá sobre o que fazer com as mulheres de membros do Estado Islâmico.

Para este Orientalíssimo blog, a questão toca em outro ponto importante sobre a cobertura feita pela imprensa em lugares como a Síria e o Iraque. Por vezes, jornalistas não seguem o mesmo rigor que é esperado, por exemplo, de quem escreve sobre os Estados Unidos ou a Europa. Proliferam, ademais, jornalistas que — como Callimachi — não falam árabe e, portanto, dependem de tradutores para conversar com seus interlocutores. Não é raro encontrar em campo jornalistas que pouco ou nada estudaram sobre o Oriente Médio, mas acabam determinando o tom do debate público. Testemunhei isso inúmeras vezes, como correspondente da Folha em Jerusalém em 2013 e 2014.

Ainda há, por outro lado, bastantes entusiastas do trabalho de Callimachi. Ela própria tem compartilhado em seu perfil na rede social Twitter diversas mensagens de apoio e elogios à cobertura. Em uma das mensagens que Callimachi retuitou, Margaret Sullivan — do Washington Post — sugere que parte das críticas à repórter é resultado de ressentimento de seus colegas, inveja por seu sucesso e machismo.


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