Frei Betto
O Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP), a pedido do Centro Dom Bosco, determinou que a ONG Católicas pelo Direito de Decidir não poderá mais adotar o termo “católicas”. A ONG, que pode recorrer, tem 15 dias para modificar seu estatuto e suprimir o adjetivo “católicas”, sob pena de multa diária de R$ 1.000.
Na opinião do relator, o desembargador José Carlos Ferreira Alves, não é “minimamente racional e lógico o uso da expressão ‘católicas’ por entidade que combate o catolicismo concretamente com ideias e pautas claramente antagônicas a ele”.
A Católicas pelo Direito de Decidir defende a lei brasileira, que admite o aborto em casos como estupro, risco de morte da gestante e anencefalia.
A decisão judicial é equívoca. Primeiro, não cabe à Justiça civil determinar quem pode ou não se considerar católico. Isso caberia à instituição eclesiástica, mas nem ela vai a tal limite. O direito canônico admite que um católico seja excluído da Igreja por professar, por exemplo, apostasia. Ainda assim, nada impede que se considere católico.
Estamos de volta à Inquisição, quando os direitos civil e religioso se confundiam? Ou o TJ-SP pretende imitar os tribunais nazistas por condenarem quem se assumia como judeu? Os desembargadores de São Paulo podem, sim, punir quem não cumpre a lei, mas exorbitam de suas funções ao prescrever quem é digno ou não de se considerar adepto de determinada confissão religiosa. Daqui a pouco teremos juiz evangélico ordenando o fechamento de terreiros de candomblé pelo simples fato de considerá-los espaços do demônio.
Na lógica adotada pelos acusadores, não é a ONG que deveria ser alvo do tribunal, e sim aqueles que formularam e assinaram a legislação que, no Brasil, permite o aborto em determinadas circunstâncias. Todos os parlamentares e juízes católicos que propuseram e oficializaram esta lei deveriam ser excomungados pela corte paulista, tal como a ONG Católicas pelo Direito de Decidir.
A Igreja Católica nunca chegou a uma posição definitiva quanto ao aborto. Oscilou entre condená-lo radicalmente ou admiti-lo em certas fases da gravidez. Atrás disso situa-se a discussão sobre qual o momento em que o feto pode ser considerado ser humano. Até hoje, nem a ciência, nem a teologia tem uma resposta exata. A questão permanece em aberto.
Santo Agostinho e Santo Tomás de Aquino admitiam que só a partir de 40 dias após a fecundação se pode falar em pessoa (unidade corpo-espírito), quando então lhe é infundida a “alma racional”. Essa posição virou doutrina oficial da Igreja Católica a partir do Concílio de Trento (1563). Santo Afonso de Ligório admitia o aborto terapêutico, caso a vida da mãe corresse risco imediato.
No século 20, Roma passa a admitir o aborto indireto, em caso de gravidez tubária ou de câncer no útero. O renomado moralista católico Bernhard Häring (1912-1998) admite o aborto quando se trata de preservar o útero para futuras gestações ou se o dano moral e psicológico causado pelo estupro impossibilita a mulher de aceitar a gravidez. Nem a Igreja tem o direito moral de exigir de seus fiéis atitudes heroicas. Ela reconhece que, inclusive na questão do aborto, a responsabilidade moral pertence, em última instância, ao inviolável reduto da consciência humana e só pode ser julgado por Deus.
Embora a Igreja Católica defenda a sacralidade da vida do embrião a partir da fecundação, jamais comparou o aborto ao crime de infanticídio nem prescreveu rituais fúnebres ou batismo “in extremis” para os fetos abortados.
A decisão do TJ-SP retrata essa conjuntura autoritária na qual se encontra o nosso país, cujo presidente, católico rebatizado evangélico, contraria todos os preceitos bíblicos e exalta torturadores —e ministros e ministras se empenham em fazer coincidir a legislação vigente com a lista de pecados de sua confissão religiosa. Só fica faltando a fogueira...
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