terça-feira, 27 de outubro de 2020

TAÍS GASPARIAN Assédio judicial, FSP

 Taís Gasparian

Advogada e sócia do escritório Rodrigues Barbosa, Mac Dowell de Figueiredo, Gasparian - Advogados, integra o Conselho Consultivo do InternetLab, centro de pesquisa em direito e tecnologia

Uma nova modalidade de chicana tem se tornado mecanismo eficaz de constrangimento de jornalistas e cidadãos. O assédio judicial é caracterizado por um mau uso do direito de ação em que, dizendo-se ofendido ou atacado, um indivíduo processa aquele que teria sido o emissor da ofensa, unicamente para intimidá-lo. A pretexto de exercer um direito, o autor do processo, usando uma prerrogativa que lhe é assegurada, desborda do exercício regular para o abusivo, com o objetivo de prejudicar outrem.

Aparentemente, é um processo como outro qualquer. Por baixo dessa aparência burocrática, esconde-se a intenção verdadeira do autor da ação: intimidar. O autor não está interessado no resultado do processo, quer apenas se valer do mesmo para levar insegurança e desassossego àquele a quem quer prejudicar. Nos EUA, a tática foi identificada há anos no direito concorrencial e recebeu a denominação de “sham​ litigation”. Posteriormente, atitude similar foi cunhada como “SLAPP” (“Strategic Lawsuit Against Public Participation”), e em diversos estados já há legislação que promete reverter a situação.

A advogada Taís Gasparian no seminário Pós-Verdade, que discutiu o fenômeno das notícias falsas - Reinaldo Canato - 11.set.18/Folhapress

A prática é bem mais cruel e eficaz no intuito da intimidação quando orquestrada por uma entidade que conclama seus seguidores a processarem aquele que emitiu a opinião. Foi o que aconteceu há pouco mais de dez anos, quando a jornalista Elvira Lobato e a Folha sofreram mais de cem processos movidos por diversos fiéis da Igreja Universal em diversas cidades do país. Essa tática maliciosa, na verdade, constitui um desrespeito ao Judiciário, uma vez que o reduz a mero instrumento a serviço de alguém que só quer agredir.

Agora, com o escritor João Paulo Cuenca, o mesmo filme de horror se repete. Novamente, fiéis e pastores já moveram inúmeras ações, por não terem gostado de um tuíte do escritor. Ricardo Sennes também está sendo vítima do assédio judicial, com mais de 90 processos movidos por pessoas que se dizem ofendidas com a análise que ele fez em um telejornal. Há anos, os jornais A Tarde, da Bahia, e o Extra, do Rio de Janeiro, sofreram ataques similares. Rita Lee foi outra vítima, processada por cerca de 50 policiais de Sergipe por conta do que teria dito no palco no seu último show.

Há mais. O jornal Gazeta do Povo, do Paraná, sofreu assédio judicial por parte de diversos promotores e magistrados, que não se conformaram com uma reportagem em que suas remunerações foram divulgadas.

Em todos esses casos, os autores das ações fingem mover-se pelos princípios mais caros, como a defesa da honra e o acesso à Justiça, mas a alegação é mera aparência. Na verdade, só provocam disfuncionalidade no sistema de Justiça, que não prevê um remédio eficaz para combater o assédio judicial.

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O toque de sordidez é dado pelo rito escolhido pelos autores das ações: os Juizados Especiais Cíveis. Criados para facilitar o acesso à Justiça e tratar de causas de menor valor e complexidade, podem provocar um desequilíbrio na relação processual quando mal utilizados.

Como o procedimento é simplificado, não são permitidos diversos recursos e, idealizados para processos em que há a possibilidade de acordo entre as partes, o procedimento obriga o réu a se deslocar para audiências que são inúteis. O réu, então, se vê compelido a ter que viajar de uma ponta a outra do Brasil, para dezenas de cidades, em poucos dias e, pior, sem nenhuma chance de acordo. Não há como estabelecer uma composição quando uma das partes, a que acusa sem motivos, não tem a intenção de dialogar, pois quer apenas dar prejuízo à outra parte.

A situação que estamos vivendo é inaceitável. O conjunto dos processos configura atitude abusiva, com o único propósito de produzir sobre o emissor da opinião o chamado “chilling effect”: impor o temor de manifestar-se a respeito de um determinado tema. É necessário colocar um freio contra o “assédio judicial”, um freio contra os que abusam dos direitos como forma de cerceamento da liberdade de expressão.


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