quinta-feira, 15 de outubro de 2020

Balé de sombras, Rosângela Bittar, O Estado de S.Paulo

 De hoje até o dia D da sucessão das presidências da Câmara e do Senado, serão 110 dias, tempo suficiente para correção de rumos.

Na Câmara, está claro o processo da disputa de duas forças políticas. De um lado, o governo. O deputado Arthur Lira torna-se representante do Palácio do Planalto e, se for eleito, transfere o comando da Câmara ao próprio presidente Jair Bolsonaro.

De outro, a Câmara propriamente dita. A entrega da presidência ao controle preferencial dos deputados, o que representaria a continuidade da liderança de Rodrigo Maia. Depois de aparecerem vários favoritos, o candidato do grupo autonomista à presidência, no momento, é Baleia Rossi, do MDB de São Paulo.

Com as bênçãos do atual presidente e alavancado pelo trabalho de aliciamento do ex-presidente Michel Temer. Que, atuando em causa própria, elegeu-se presidente da Casa em três legislaturas. Temer é reconhecido como o maior especialista nestas negociações típicas da atividade parlamentar.

Davi Alcolumbre
Davi Alcolumbre, presidente do Senado Foto: Michel Jesus/Agência Câmara

Já a sucessão da presidência do Senado tornou-se um balé de sombras. O atual presidente, senador Davi Alcolumbre, persegue um desfecho do tipo ilegítimo e ilegal.

Alcolumbre voluntariou-se para reeleger-se. Uma decisão pessoal, cuja razão real ainda não emergiu.

Como se o instituto da reeleição, por si só, já não envolvesse tantas dúvidas e clamores por sua extinção, Alcolumbre acrescentou outras transgressões. A começar pela hipótese de exigir uma decisão judicial para viabilizar seu desejo. O presidente do Senado assumiu tal obstinação e paralisou as atividades da Casa.

No último domingo, 11 de outubro, em reportagem no Estadão, Amanda Pupo listou os itens do “paradão” do Senado. Nas votações suspensas ou adiadas estão urgências, como o novo marco legal do mercado de gás, as regras para regulação dos setores ferroviário e elétrico, sem falar das votações em sessões conjuntas do Congresso. Que não avançam porque dependem da atuação do presidente do Senado, ocupado em tempo integral na montagem das suas mirabolantes batalhas pela reeleição.

O silêncio do Senado conta com a conivência da oposição, dos ex-governadores, dos estreantes, dos antigos e de todos. Indiferentes às ações do presidente da Casa, que só age quando se torna premente usar, através da sua, a mão oculta do governo na definição das pautas.

Na verdade, o Senado sempre teve uma tradição de vida serena, em oposição à trepidante Câmara. Ou seja, cada um, ali, faz o que quer, sem ser incomodado. Paz quebrada, em períodos da história, por independentes bons de briga e de discurso, como foram o senador Pedro Simon, por 30 anos, ou, muito remotamente, o legendário senador Teotônio Vilela. Agora, nem isto.

A imobilidade do Senado é estratégica. Os ex-governadores, experientes em composições esdrúxulas nas bases estaduais, tendem a repetir o descompromisso ao assumir o Senado.

E a oposição não tem oportunidade de se exercitar. Como se vê pelo repertório do seu líder, Randolfe Rodrigues. Que se sobressai muito mais nas votações do Supremo do que no próprio Senado. Mais advogado do que senador. Mais demandante judicial que parlamentar em ação.

E, à falta do Centrão, que inexiste no Senado, o governo caça com Alcolumbre. O Senado resolveu se tornar, de fato, uma Casa secundária. Presta-se pouca atenção ao que lá se passa e, sobretudo, ao que não se passa.

O Congresso, de fato, não se renovou. Câmara e Senado seguem como orquestras paralelas. E o velho maestro arranjador de outros tempos, senador Renan Calheiros, acaba de retornar ao posto para reforçar a pretensão de Davi Alcolumbre, que o destituiu e agora se beneficia de seu apoio e renovado fôlego.

Numa composição esperta, que dá a Bolsonaro tempo livre para abandonar-se à obsessão contagiante: a sua própria campanha da reeleição.

*COLUNISTA DO ‘ESTADÃO’ E ANALISTA DE ASSUNTOS POLÍTICOS

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