Fernando Reinach, O Estado de S. Paulo
31 de outubro de 2020 | 05h00
Sem um medicamento que cure a covid-19 e com uma tolerância cada vez menor para as medidas de distanciamento social, todas as esperanças foram depositadas na vacina. É aconselhável diminuirmos as expectativas. É muito provável que no próximo ano a vacina não vá acabar com a necessidade de distanciamento social.
Infelizmente existe um compromisso entre a velocidade com que a Fase 3 dos testes é conduzida e o que saberemos sobre as propriedades das vacinas. Quando uma pessoa é exposta ao Sars-CoV-2 ela pode se infectar ou não. Uma vez infectada, essa infecção pode ser tão leve que a pessoa sequer apresente sintomas ou tenha leves. Outros podem precisar de hospital, e de oxigênio. Algumas pessoas serão entubadas. Finalmente, a pessoa pode se recuperar ou morrer. Uma vacina pode interferir em cada um desses passos. Ela pode impedir que a pessoa seja infectada, ou pode, se for infectada, aumentar as chances de que a infecção seja assintomática. Caso não tenha nenhum desses efeitos, ela pode garantir aos vacinados uma covid-19 com sintomas leves (é o caso da gripe). Mas ela pode reduzir a mortalidade mesmo dos que apresentem sintomas mais graves. Além disso, a vacina pode funcionar em toda a população ou ser mais eficaz em jovens.
Quando os cientistas planejam um estudo de Fase 3, é necessário definir qual desses efeitos se quer medir, qual a pergunta que o estudo pretende responder. São os chamados desfechos do estudo (endpoints). O estudo pode ter como objetivo saber se os vacinados são menos infectados, ou verificar se os vacinados morrem menos ou têm casos mais leves. Idealmente um estudo de Fase 3 deveria tentar responder a todas essas perguntas, permitindo entender exatamente o efeito da vacina sobre a história natural da doença nos vacinados.
O problema é que, para medir cada um desses desfechos, a duração e o tamanho do estudo (número de voluntários envolvidos) são muito diferentes. Em um estudo que dure seis meses e os vacinados estejam em um ambiente em que ocorre 0,12 infecção por dia em cada grupo de 1.000 pessoas (como durante o pico de casos na Inglaterra) são necessários 1.880 pessoas para verificar se a vacina diminui a taxa de infecção. Para saber se a vacina altera o número de casos sintomáticos são necessários 3.154 voluntários e para saber se altera a mortalidade são necessários incríveis 619.130 voluntários.
Esses números são para pessoas de 20 a 29 anos (nas quais a letalidade é muito baixa). Mas se o estudo deseja determinar o efeito da vacina sobre letalidade entre pessoas de mais de 80 anos o número cai de 619 mil para 24 mil voluntários. Esses números são válidos para um ambiente onde a taxa de contaminação é muito alta.
A necessidade de aprovar e colocar a vacina no mercado rapidamente forçou os epidemiologistas a planejar estudos de Fase 3 que, num prazo de 4 a 6 meses, pudessem dar o máximo de informação. Esses estudos têm como objetivo inicial (desfecho ou endpoint medido) saber se a vacina candidata reduz ou não o número de infectados. Num primeiro momento não serão suficientes para informar com uma certeza estatística se as pessoas infectadas após serem vacinadas terão casos mais leves ou menor chance de morrer.
Esses dados só serão obtidos muito mais à frente, talvez depois de 1 ou 2 anos de estudo. Além disso a barreira para aprovar as vacinas foi baixada. O que se pode esperar das primeiras vacinas aprovadas é que elas diminuam em mais de 50% a probabilidade de uma pessoa ser infectada, mas não saberemos se essa pessoa for de fato infectada se a doença será mais brande e se a letalidade do vírus será reduzida pela vacina.
É o melhor que a ciência pode entregar nesse curto prazo, mas seguramente não vai permitir que abandonemos tão cedo as máscaras e outros cuidados.
MAIS INFORMAÇÕES: WHAT DEFINES AN EFFICACIOUS COVID-19 VACCINE? A REVIEW OF THE CHALLENGES ASSESSING THE CLINICAL EFFICACY OF VACCINES AGAINST SARS-COV-2. LANCET INFECT DIS HTTPS://DOI.ORG/10.1016/ S1473-3099(20)30773-8
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