Procurei conhecer um pouco de Louise Glück, a poeta americana que recebeu o prêmio Nobel deste ano. A Academia Sueca elogiou a "beleza austera" de seus versos.
De fato, as coisas que li não possuem a capacidade de deslumbramento nem de surpresa, tão fácil de encontrar em outros laureados mais ou menos recentes, como Wislawa Szymborska ou Tomas Tranströmer, já traduzidos no Brasil.
Glück sofreu de anorexia na adolescência. Eis o que ela escreveu, num ensaio de seu livro "Proofs and Theories", de 1994. "Não me parece que o intento da anorexia seja autodestrutivo, embora suas consequências frequentemente o sejam. Seu intento é o de construir, quando faltam outros recursos, um 'eu' plausível."
Acontece que "o constante repúdio do 'eu' ao que lhe é exterior acaba também separando o 'eu' do próprio corpo." Ela continua. "A anorexia constrói um sinal físico que é calculado para manifestar desprezo pela necessidade e pela fome; algo planejado para tornar o 'eu' livre de toda forma de dependência, aparentemente completo e autossuficiente."
Surge, então, um paradoxo. "Esse sinal de que se vale a anorexia é um sinal físico, impossível de se manter por um simples ato de vontade, e a pungência da metáfora se baseia nisto: a anorexia não prova a superioridade da alma mas sua dependência da carne."
Na medida em que ia emagrecendo, Louise Glück percebeu que não queria morrer. Mais que isso: "Morrer seria uma metáfora patética para o estabelecimento de uma separação entre minha mãe e mim".
Ela passaria anos e anos fazendo psicanálise; o tema das relações familiares aparece com frequência nos seus poemas —mas, justamente, a "austeridade" de sua escrita evita excessos de lirismo e intensidade confessional.
Num poema de "Vida na Aldeia" ("A Village Life", 2009), são os morcegos que falam em seu lugar, dirigindo-se a um ser humano. "A noite criou em nós/ um pensamento com mais foco que o seu, ainda que rudimentar:/ homem-ego, homem aprisionado no seu olho,/ há um caminho que você não consegue ver, para além do alcance do olho,/ aquilo que os filósofos chamaram/ a via negativa: para dar lugar à luz/ o místico fecha seus olhos —a iluminação/ que ele busca destrói/ as criaturas que dependem das coisas."
Não "depender das coisas" —eis, de novo, o ideal de autossuficiência a que Louise Glück estava se referindo ao falar da anorexia. A vitória sobre a doença se faz, naturalmente, porque o ímpeto de rejeição não depende mais de um "sinal físico" para se confirmar, mas se expressa na poesia -- pela voz de um morcego.
Em "Telescópio", evita a primeira pessoa, falando diretamente ao leitor. "Existe um momento, depois que você tira os olhos [do telescópio],/ em que você esquece onde estava,/ porque andou vivendo, parece,/ em algum outro lugar, no silêncio do céu."
Você visitou, diz ela, "um lugar onde a vida humana não tem nenhum significado./ Você não é uma criatura dentro de um corpo./ Você existe como as estrelas existem,/ participando de sua quietude, de sua imensidão".
Depois, claro, você volta ao mundo e às sensações reais. Mas nisso, conclui Louise Glück, é que está a ilusão de ótica. Trata-se de perceber, na verdade, "como é gigantesca a distância/ entre uma coisa e todo o resto".
A sensação de distância, de isolamento, é na verdade tão profunda que, pelo que li, os próprios versos da autora parecem "soltos" uns dos outros. Fogem da acumulação retórica (que é um modo de estar atento às reações emocionais do ouvinte) e mesmo do diálogo interior (quando um poeta se corrige, se contradiz, põe em jogo o próprio pensamento).
Também se evita a profusão de metáforas —que são sempre um modo de "aproximar" realidades distintas. A poesia não é, para ela, uma procura, mas uma fuga para dentro.
Louise Glück conta que se apaixonou muitas vezes. Mas a separação talvez seja mais importante para ela do que estar com alguém. "Eu estava numa espécie de sonho ou transe—/ apaixonada, mas ainda assim/ sem querer nada", diz ela em "Eros".
"Você não estava envolvido", continua. "Eu podia deixar/ você levar a vida que precisasse levar./ De manhãzinha a chuva diminuiu. Fui fazer as coisas/ Que se fazem à luz do dia [...] Era o bastante e você já não tinha nada a ver com isso."
Poesia dura e triste, como se vê. Num mundo em que o desejo e o consumo são quase que condições indispensáveis da existência, Louise Glück é uma voz que vem do abismo.
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