SÃO PAULO
Ele gosta de contar esta história. Acha-a reveladora.
Era pela manhã, sábado. Outubro de 1970. A ditadura de vento em popa, com AI-5 e tudo. O inexperiente repórter, 22 anos, estava ainda sozinho na Redação da Folha, de plantão, quando toca o telefone. Polícia Federal. “Os tiras desta vez acordaram cedo”, pensou.
Informavam que na noite anterior, Joaquim Câmara Ferreira, o Comandante Toledo, que assumira a direção da Aliança Libertadora Nacional (ALN) após a morte de Carlos Marighella, no ano anterior, resistira à voz de prisão e morrera devido a um ataque cardíaco.
Inexperiente, mas não ingênuo, o repórter ouviu tudo com atenção, mas não acreditou na história. Foi até o local do “infarto” e descobriu que o guerrilheiro fora levado pelos policiais após apanhar bastante. Morreria poucos dias depois.
De volta ao jornal, preencheu as laudas com a história apurada, não a oficial, e ficou esperando os elogios da chefia. Chega então o diretor de Redação, Cláudio Abramo, com as laudas nas mãos, rasga-as com delicadeza à sua frente e diz-lhe educadamente: “Nunca mais faça isso. Se alguém precisar sujar a mão de merda, eu sujo. Você é muito moço e puro para isso".
“Gosto de contar essa história porque ela explica bem quem era o Cláudio e mostra como eu era burro. Imagina, publicar em plena ditadura uma reportagem sobre a morte de um terrorista?”
No dia seguinte, o jornal publicou a versão oficial, a da polícia, é claro. “Foi a minha grande bobagem no jornalismo”, conta João Batista Natali, 72, meio século depois, vendo o problema que poderia ter causado a si e ao jornal se seu texto tivesse sido publicado. Provavelmente o jornal seria censurado, e os jornalistas envolvidos poderiam ser presos.
O trabalho na Folha não havia sido o seu primeiro em uma Redação. Em 1967, ainda no primeiro ano da Escola de Comunicações e Artes da USP, a ECA, implantara em São Paulo, com mais cinco colegas universitários, a sucursal do carioca Última Hora. No ano seguinte, foi para os Diários Associados. “Mas era uma bagunça; o salário sempre atrasava, uma zona”.
Decidiu então, já em 1969, fazer um teste na Folha. Quando entrou na Redação, viu toda uma equipe montada para acompanhar a chegada do homem à Lua. “Já me puseram sentado no mesão e comecei a trabalhar na mesma hora”.
Começou ali então, há 51 anos, a sua longa carreira no jornal —que só se encerraria em 2007, quando se aposentou.
Após fazer a cobertura da viagem à Lua, ficou como redator no que é hoje a editoria Mundo. Em seguida, foi repórter de um caderno dominical editado por José Alvaro Moisés –que viria a ser secretário Nacional do Audiovisual de 1999 a 2002-- e depois repórter de Nacional, atual Cotidiano.
Em 1971, já formado, decidiu fazer mestrado em semiologia e embarcou para Paris.
“Um tempo depois, o jornal pediu-me para ser freelancer, e me comprometi a começar em abril de 1974. Mas Georges Pompidou morreu, e como na França não há vice, cobri a campanha da eleição presidencial em que Giscard d’Estaing derrotou François Mitterrand por minúscula margem”, relembra.
Natali foi então contratado como correspondente da Folha na França. A censura da ditadura não atentava para as notícias do exterior, e o repórter teve liberdade para abordar todo o noticiário político, inclusive as discussões que ocorriam à época sobre o socialismo democrático.
Amante de música clássica desde criança –aos 13 já frequentava assiduamente o Theatro Municipal com um amigo de seu pai--, Natali aproveitou ao máximo o que o Velho Continente lhe oferecia nesse universo: “Me sentia como uma criança na Disneylândia. Ia a tudo o que era concerto gratuito. Quando comecei a ter um pouco de dinheiro, passei a fazer assinaturas”.
Daquele período em Paris, ele conta uma passagem curiosa. A Associação da Imprensa Estrangeira convidou Salvador Dalí para uma entrevista. “Ele apareceu atrasadíssimo, dentro de um escafandro da década de 30, disse que não queria ser contaminado pelos jornalistas e foi embora sem falar nada.”
De volta ao Brasil, em 1982, esteve em várias áreas da Folha: editou por dois anos o caderno Exterior, coordenou o Banco de Dados, morou em Brasília fazendo a coluna Painel e, quando retornou a São Paulo, pôde aliar música a trabalho.
E começou quase por acaso. Uma noite, indo a uma apresentação no Municipal com Luis Antônio Giron e Antonio Gonçalves Filho [então jornalistas da Ilustrada], eles lhe perguntaram: “Por que você não escreve sobre o concerto?”. Escreveu. E não parou mais.
Acompanhou toda a reformulação da Osesp, iniciada em meados da década de 1990, quando o maestro Eleazar de Carvalho morreu e John Neschling assumiu, viu passo a passo as obras que transformaram a estação Júlio Prestes na Sala São Paulo, escrevia sobre todos os concertos na cidade...
“O Neschling gostava muito de mim e me contava tudo; metade das matérias que estão na antiga pasta do arquivo da Osesp são minhas”.
Daquela época, lembra algumas viagens que fez ao exterior para cobrir o universo da música clássica, como quando esteve no Festival de Salzburgo, na Áustria, ou quando foi enviado para acompanhar uma turnê da Osesp à Alemanha e à Inglaterra.
Com uma vida profissional assim, Natali obviamente tem inúmeras histórias engraçadas para contar. Além daquela de Dali, promete que muitas outras estarão numa autobiografia que ele já começou a escrever mas ainda não tem nem ideia de quando vai entregar ao editor –ah, se fizesse isso nos seus tempos de repórter.
JOÃO BATISTA NATALI, 72
Começou sua carreira de jornalista em 1967, quando, ainda no primeiro ano da faculdade, junto a cinco colegas também estudantes, abriu a sucursal paulistana do jornal Última Hora. Ingressou na Folha dois anos depois, e sua primeira cobertura no jornal foi o pouso na Lua. Com 51 anos de carreira, ele trabalhou como repórter em Brasília, correspondente na Europa, crítico de música e editor.
Este texto faz parte do projeto Humanos da Folha, que apresenta perfis de profissionais que fizeram história no jornal.
Nenhum comentário:
Postar um comentário