O fato de a Natura ter decidido chamar Thammy Miranda —homem trans— para ser garoto propaganda do Dia dos Pais significa que o mercado já precificou o risco do escândalo que provocaria. Estratégia conhecida, que nos lembra as campanhas da Benetton nos anos 1980 e 1990 fotografadas por Oliveiro Toscani. Em plena difusão da ideia de “peste gay” —a fake news da época— Toscani retrata um jovem que morria em decorrência das complicações do vírus HIV como Jesus.
O mercado, que tem como único e exclusivo objetivo vender mais, acaba por revelar o tamanho da brecha pelo qual o novo pode passar, sem arranhar demais a imagem do produto. Em 2018 o Boticário arcou com 17 mil “dislikes” ao colocar uma família negra em seu anúncio. Foi acusada de falta de representatividade num país de maioria negra.
O cálculo matemático fornecido por empresas especializadas em pesquisa de consumo permite apostar —há sempre um risco, claro— em uma tendência que revela e, ao mesmo tempo, antecipa algo. Sim, já podemos pensar em um homem trans para encabeçar uma campanha sobre paternidade, pois há espaço para tal, ou usando termo da filósofa Judith Butler, esse gênero se tornou um tanto mais inteligível. O mérito da campanha é estimular essa inteligibilidade.
Uma parcela importante da população se identifica com minorias de gênero e com diferentes orientações sexuais, no entanto, isso não significa que aceite essa realidade sob seu teto. Precisamos reconhecer a dupla moral.
A família bolsonarista —que tem por política incentivar o pior da sociedade— tem razão quando diz que as pessoas aceitam trans e homossexuais desde que não sejam seus filhos. Isso é um fato, mas ele deve ser combatido, não celebrado. Nesse sentido, vale o elogio à defesa que Gretchen faz do filho Thammy, mas também de mães e pais bem menos midiáticos que têm superado o choque de descobrir que o filho se entendeu com um gênero diferente daquele que lhe atribuíram ao nascer.
Nunca é fácil diante da criação que tiveram e por temerem —com razão— pela vida dos filhos. Basta acessar os números da Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra): aumento de 49% de assassinatos de transexuais de janeiro a abril de 2020.
Enchemos a boca para usar os significantes “mãe” e “pai” sem nos darmos conta de que eles são isso mesmo: significantes e, portanto, criações humanas. Antropologia e história estão aí para documentar diferentes formas com as quais seres humanos lidam com o parentesco e filiação —recomendo “After Kinship” de Janet Carsten.
Aos que temem que o mundo ruirá se borrarmos os limites entre homem e mulher é bom lembrar que desde que a humanidade existe esses limites têm sido criados e recriados em diferentes versões. A antropóloga Françoise Héritier contará, por exemplo, que entre os Nuer, tribo de pastores do Sudão, uma mulher estéril pode ser assimilada ao grupo dos homens e ter sua própria esposa, que engravidará de um
desconhecido, mas de cujos filhos ela será o pai.
Pai e mãe são nomes comumente associados aos gêneros e os gêneros são questionáveis. Quanto tempo levará para descobrirmos que a função de pais e mães passa pelo reconhecimento social —que começa a se ampliar—, por um lugar especialíssimo de devoção junto aos filhos e não por pênis e úteros?
Feliz Dia dos Pais para os que conseguem se dedicar suficientemente aos filhos e para os que, com todas suas limitações, nunca desistiram deles.
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