Para sobreviver, instituição precisa ser assumida pelo governo
O anúncio de que o processo de fritura de Regina Duarte dentro do governo terminou com sua designação para a Cinemateca Brasileira talvez sirva, ao menos, para que mais gente olhe para esse órgão tão representativo da cultura brasileira e se sensibilize com seu desmonte.
A Cinemateca é representativa não só por seu acervo, rico e diverso, mas por sua história, cheia de adversidades.
Criada pelo crítico Paulo Emílio Salles Gomes (1916-1977), a Cinemateca é fruto quase que de teimosia.
E, certamente, de um idealismo que carrega em si uma ideia de Brasil hoje tornada démodé.
A instituição começou a ser gestada na década de 1940, como um cineclube, foi depois incorporada ao Museu de Arte Moderna e, em 1956, transforma-se em Cinemateca Brasileira. Na década de 1980, foi incorporada ao Iphan, o Instituto de Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. Ao longo dessa história, foram algumas as suas quase-mortes.
O ponto crítico a que chegou agora é fruto do desprezo deste governo pela cultura. Mas seu desmonte o antecede. A situação absurda, que tem em Regina a cereja do bolo, decorre de uma sequência de más decisões por parte dos gestores públicos e de um descaso atávico que o Brasil tem com a memória.
O limbo institucional em que a Cinemateca Brasileira se encontra deriva de uma crise iniciada em 2013, quando uma auditoria da Controladoria-Geral da União apontou problemas na execução de recursos e em processos licitatórios.
À altura, a então ministra da Cultura, Marta Suplicy, trocou o comando da instituição, demitiu funcionários e esvaziou o Conselho Consultivo, estrutura que, desde sempre, marcou o espírito da instituição.
Cinco anos depois, o então ministro Sérgio Sá Leitão, hoje secretário de Cultura e Economia Criativa de São Paulo, transferiu a gestão para uma organização social, no caso, a Acerp (Associação Comunicativa Roquette Pinto), e extinguiu o Conselho.
Entender esse vaivém institucional talvez seja mais elucidativo do que refletir sobre o que significa a indicação da Regina Duarte —até porque, a esta altura, “Regina fala por si” e ninguém ainda entendeu direito que cargo ela pode ocupar.
O que é certo é que a sobrevivência da Cinemateca Brasileira envolve uma reordenação institucional e uma mudança no modelo de gestão. E essa mudança passa pela compreensão de que a responsabilidade pela manutenção de uma cinemateca é do governo. Ela é, afinal, um bem público.
A volta à estrutura governamental seria, nesse sentido, ao menos uma nova possibilidade de sobrevivência —até porque a organização social não tem dinheiro. Ao mesmo tempo, como o conselho deixou de existir, o governo, se assim desejar, pode controlar o órgão, sem qualquer forma de diálogo com a sociedade.
E não podemos nos esquecer ainda de que este governo não conseguiu nem sequer efetivar a transferência da Secretaria da Cultura do Ministério da Cidadania para o Ministério do Turismo. A mudança foi anunciada em novembro de 2019, mas o decreto com a nova estrutura organizacional ainda aguarda a publicação no Diário Oficial.
Mas uma instituição que já sobreviveu a quatro incêndios talvez tenha, como os gatos que Paulo Emílio amava, sete vidas. O que ela tem, decerto, é uma presença simbólica em São Paulo. Sua cultura impregna a história do ensino do cinema, da crítica, da gestão e da realização de filmes.
Dado seu histórico, é improvável que a instituição desapareça. Mas sua decadência é palpável. Uma cinemateca deve preservar filmes, restaurá-los e, para que tenha a sua missão totalmente cumprida, difundi-los. A preservação e o restauro requerem não apenas investimentos mas uma grande especialização. E amor pelos filmes e pela memória. Virar as costas para um acervo tem consequências graves —não apenas simbólicas mas práticas, como mostram os incêndios. São conhecidas as histórias de cinematecas que, com sistemas de refrigeração sem manutenção e trabalhos precários de preservação começaram a ter o ambiente tomado por cheiro de vinagre.
É que a base de acetato da película cinematográfica, se não for devidamente preservada, passa por um processo de decomposição conhecido como “síndrome do vinagre”. O cheiro avisa que a decomposição começou. Para Regina, que diz desejar esquecer os mortos, não deixa de ser um destino irônico.
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