domingo, 24 de maio de 2020

Hospital de luxo é um sonho de consumo diante do colapso da rede pública nacional, FSP

Classe média, que não se indigna com a desigualdade, almeja ser atendida nos centros de ponta

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É notável a semelhança entre a arquitetura dos hospitais de campanha e aquela em que são dispostas as covas abertas às centenas, lado a lado, nos cemitérios reservados aos pobres em plena pandemia. É como se as macas e as covas, as camas-covas, sem lápide, fossem uma só e única coisa. A indumentária dos coveiros, os equipamentos de proteção individual, também não diferem daqueles dos profissionais de saúde. Por entre as valas dos cemitérios, coveiros caminham fantasmagóricos em seus trajes brancos.
Valas abertas do cemitério da Vila Formosa, em São Paulo  - Zanone Fraissat - 30.abr.2020/Folhapress
É fato que, no momento atual, parte do que se conhece por “hospital” voltou a ser o que era antes do século 18. Segundo Michel Foucault, antes do século 18, o hospital era essencialmente uma instituição de assistência aos pobres, mas apenas pela necessidade de separação e exclusão. “O pobre necessitava de assistência; como doente, ele era portador de doença que ele arriscava propagar. Resumindo: ele era perigoso. Disso decorreu a existência necessária do hospital, tanto para recolhê-los quanto para proteger os outros do perigo representado por eles”.
Em seu texto “A Incorporação do Hospital na Tecnologia Moderna”, Foucault conclui: “Até o século 18, a personagem ideal do hospital não era o doente, aquele que se devia tratar, mas o pobre já moribundo. O hospital exercia uma função de transição da vida para a morte, de salvação espiritual muito mais do que de função material, separando ao mesmo tempo os indivíduos perigosos do resto da população”.
E eis que o hospital atravessou os séculos arrastando essa face da discriminação de classe. Daí que a classe rica —que se finge de cega quanto aos destinos dos miseráveis em meio ao colapso da rede pública de saúde, na onda letal da Covid-19—, a classe rica de Manaus, por exemplo, entra num avião UTI ao custo de R$ 80 mil e corre para se tratar em um hospital de luxo de São Paulo.
Daí que a classe média, que não se indigna com a desigualdade social —e que acha que pobre é pobre porque é vagabundo—, a classe média só falta babar de desejo assistindo aos ricos se tratarem em hospitais de ponta, de São Paulo e do Rio Janeiro. Trata-se da média classe média, a que não tem massa crítica, que não almeja outra coisa senão realizar este sonho de consumo tão atual: ser atendido num hospital do tipo Sírio-Libanês, Albert Einstein ou Rede D’Or, em São Paulo e Rio de Janeiro, por exemplo.
É fato que aqui, se morrerão mais pobres, é porque morrerão mais negros e mais índios. É fato que a escolha entre um negro e um branco por uma vaga no respirador, num hospital qualquer do país (ou do mundo), será pelo branco. É fato que o título deste texto era para conter a palavra “negro”, mas aí não daria leitura. Era para conter a palavra “indígena” também, se coubesse. Mas aí, a gente branca privilegiada não leria. Bateria os olhos no título e trataria como blablabá de ressentido. Então (inconscientemente?), adotei a isca: “hospital de luxo”. Porque aí a classe média talvez leia. E provavelmente a classe alta. Não é isso?
É fato que morrerão mais indígenas ou gente de ascendência indígena em Manaus, em Belém, nos remotos da Amazônia. É fato que dá revolta olhar para a cara branca do prefeito de Manaus, Arthur Virgílio Neto, que abriu valas comuns para enterrar os sem-hospital. O que explica que o prefeito de Manaus seja uma raposa política branca? Basta caminhar meia hora pelas ruas da cidade para ver que a população é praticamente toda de evidente ascendência indígena. Mas é comandada por um branco cujo nome carrega todos os piores vícios da política brasileira. Basta dar uma olhada no currículo do tal prefeito que foi à TV chorar pela calamidade que acomete a cidade e o estado do Amazonas —como se o sucateamento da saúde pública ali não fosse consequência da irresponsabilidade dele mesmo e dos péssimos governos da região Norte desde sempre.
Entretanto, embora não haja ainda dados completos sobre que tipo de gente anda morrendo mais no Brasil —se brancos, se pretos, se indígenas—, informações desta própria Folha, de 17 maio último, mostram o acelerado crescimento de vítimas entre pretos e pardos, bem como o aumento de mortes neste grupo, em comparação com o de brancos: “Os poucos dados disponíveis indicam que o vírus, que começou atingindo majoritariamente brancos, hoje vitimiza negros na mesma proporção. Os brancos correspondem a 34% dos óbitos até 8 de maio (3.339 pessoas) e os pretos e pardos, 35% (3.508)”.
“Um mês antes”, informa ainda a reportagem, “essa proporção era de 40% entre os brancos e 22% entre os negros, lembrando que a subnotificação era ainda maior, de 36%. Agora, os números do coronavírus se aproximam mais da realidade brasileira, cuja população é de maioria negra”.
É fato que nada disso é novo, que o sistema de saúde pública no Brasil sofre ataques há tempos, que o problema do financiamento do SUS, conforme explica o professor Áquilas Mendes, se manifesta desde sua criação na Constituição de 1988. Mendes afirma que, na crise do capitalismo contemporâneo, sob dominância do capital financeiro, o Estado brasileiro não parou de conceder incentivo à iniciativa privada, impondo riscos à saúde universal.
“Constatam-se vários aspectos”, diz ele, “que vêm enfraquecendo a capacidade de arrecadação do Estado brasileiro e prejudicando o financiamento do SUS”: 1) a permissão à entrada do capital estrangeiro na saúde; (...) 2) a aprovação da emenda constitucional 86/2015, que consolidou o subfinanciamento histórico do SUS; 3) o aumento de renúncias fiscais decorrentes da dedução dos gastos com planos de saúde e símiles no imposto de renda e das concessões fiscais às entidades privadas sem fins lucrativos (hospitais) e à indústria químico-farmacêutica; 4) a adoção de um ajuste fiscal em 2015, por parte do governo federal, com corte de recursos significativos para a saúde e a manutenção e potencialização da DRU (Desvinculação da Receita da União) por mais oito anos.
Ou seja: o que é arrecadado nem sempre é aplicado nos direitos sociais fundamentais como deveria ser, e como determina a Constituição de 1988. Essa DRU, tragédia de longa data anunciada, foi aprovada no ano 2000 (governo de Fernando Henrique Cardoso) e reeditada várias vezes, sendo a última em 2015, com validade até 2023. Quer dizer: até esta data futura, dane-se a saúde pública. O valor a ser aplicado no direito universal à saúde será aquele que o poder público julgar que deve aplicar e não o que deveria, por lei, aplicar.
Em artigo de 2009, a advogada Fabiana Okchstein Kelbert questiona a constitucionalidade das emendas constitucionais que mantêm em vigor a DRU e o silêncio do STF quanto a isso. Afinal, emenda constitucional, no Brasil, é muitas vezes sinônimo de esculhambação da Constituição.
Hospital de campanha é consequência direta, portanto, da existência dos hospitais de luxo da burguesia branca. Deste circo de horrores brasileiro, desta paisagem macabra, restará contabilizar, em 2023, que tipo de gente sobreviveu e que tipo foi, do leito provisório no hospital de campanha, para a cova definitiva no cemitério.
Marilene Felinto é escritora e tradutora, escreve na Folha duas vezes ao mês. marilenefelinto.com.br

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