Em artigo, vice usa de falsa erudição para encobrir sua truculência
O que mais chama a atenção no artigo de Hamilton Mourão (O Estado de S. Paulo, 14/5) não é o autoritarismo, mas o uso de falsa erudição para encobrir a mera truculência.
Alguém que enaltece a memória de torturador e invoca o autogolpe como princípio constitucional não choca ao atribuir a crise que vivemos à atuação dos governadores, legisladores e magistrados. Essa atitude, aliás, não destoa de outras.
Recorro, mais uma vez, a Ruth de Aquino, que, em O Globo, apontou a ação dos outros generais bolsonaristas nos últimos sete dias: os elogios de Villas Bôas à entrevista desvairada de Regina Duarte na CNN; a afirmação de Heleno de que a divulgação da íntegra da reunião ministerial —em que Bolsonaro, segundo Moro, teria cometido crime de responsabilidade— seria ato impatriótico; e a ida de Braga Netto ao STF, na marcha insana de empresários e Bolsonaro em prol da desarmonia nacional.
Mourão quis parecer culto, como quando comemorou a efeméride da criação das capitanias hereditárias como expressão da nossa tradição de empreendedorismo. No artigo desta semana, a bizarrice se tornou séria: Mourão partiu para a ignorância, num duplo sentido, exercitando-a para nos ameaçar.
Invocar o federalismo estadunidense para criticar a ação dos governadores brasileiros é revelador de um profundo desconhecimento da realidade dos Estados Unidos. Lá, os governadores têm muito mais autonomia do que no Brasil, inclusive no que se refere à lei penal. A soberania dos estados subnacionais foi um dos temas de negociação para contar com a adesão das ex-colônias à União.
Nossa engenharia foi outra. Nossa Federação, desde o Estado Novo, funciona, em muitos aspectos, como Estado unitário. E a jurisprudência tem sido sábia em definir critérios de competência quando eles não estão expressos de forma taxativa na Constituição. Quanto às questões sanitárias relativas à pandemia, por exemplo, pode-se traçar um paralelo com as questões ambientais. Quando há conflito entre as determinações municipais, estaduais e federais (no Brasil, o município é ente federado), vale a regra mais rigorosa. Um bloqueio total (lockdown) determinado pelo presidente vale em todo o território nacional; um bloqueio total determinado por um governador não pode ser relaxado, no respectivo estado, por ato do presidente.
Quanto à alegada usurpação do Poder Executivo pelos demais Poderes, Mourão distorce os preceitos e foge à responsabilidade. Um Executivo inepto não pode querer se apresentar como um poder usurpado quando contido, pela imprensa e pelo Judiciário, em seus arroubos autoritários.
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