Lamento não ter conhecido Carlo Cipolla. Quando lecionei na Universidade da Califórnia em Berkeley, em 1996, ele já tinha se aposentado. Restava a inevitável influência de uma obra admirável por inteligência, generosidade e elegância. Cipolla (morto em 2000) foi um dos maiores historiadores da economia da segunda metade do século passado.
Eu, professor convidado de antropologia médica em 1996, descobri em Berkeley as contribuições de Cipolla à história da medicina (por exemplo, sobre a gestão da saúde na Europa nos séculos da grande peste).
Também descobri na época um livrinho de Cipolla que acaba de ser publicado em português: ”As Leis Fundamentais da Estupidez Humana” (Planeta). Cuidado, não se deixe enganar: não é apenas uma brincadeira. Sim, o texto é curto e quase jocoso, mas nele Cipolla, que era um racionalista convicto, quer mesmo dar conta da relevância dos estúpidos na história da espécie humana.
Para Cipolla, os estúpidos são uma constante “sempre e inevitavelmente” subestimada
—ao ponto que os não estúpidos sempre esquecem que, “sob quaisquer circunstâncias, lidar
e/ou se associar a pessoas estúpidas infalivelmente acaba sendo um erro que custa caro”.
—ao ponto que os não estúpidos sempre esquecem que, “sob quaisquer circunstâncias, lidar
e/ou se associar a pessoas estúpidas infalivelmente acaba sendo um erro que custa caro”.
Minha pequena discordância com Cipolla é um efeito de minha confiança na cultura. Para ele, a estupidez não depende de nenhuma caraterística específica e é constante em todos os subgrupos humanos. Eu tendo a pensar (ou esperar) que ao menos uma parte da estupidez possa ser atenuada, por exemplo, pelo estudo.
Mas vamos ao essencial: como se define a estupidez? Quem são os estúpidos? Como reconhecê-los?
Definição de Cipolla: “Uma pessoa estúpida é uma pessoa que causa prejuízo a outra pessoa ou a um grupo de pessoas enquanto ela mesma não obtém ganho e, possivelmente, incorre em perdas”.
Definição de Cipolla: “Uma pessoa estúpida é uma pessoa que causa prejuízo a outra pessoa ou a um grupo de pessoas enquanto ela mesma não obtém ganho e, possivelmente, incorre em perdas”.
A irracionalidade dessa conduta é a marca da estupidez. O bandido (que é outra categoria do humano) causa prejuízo a outros, mas é para obter um ganho; por isso, o bandido pode produzir transferências de riqueza sem empobrecer a sociedade como um todo. Já o estúpido empobrece a todos pois produz danos sem ele ganhar com isso.
Com o número de estúpidos sendo sempre subestimado, não vai ser difícil encontrar um exemplo.
No dia 12 de maio, o Brasil ultrapassava 12 mil mortos de Covid-19 e atingia a marca de 881 mortes em 24h. Diante desse pesadelo sanitário e econômico, um presidente poderia ser “inteligente” (outra categoria de Cipolla), ou seja, planejar medidas que favorecessem o bem comum ou atenuassem o sofrimento da nação; outro poderia ser bandido, ou seja, inventar maneiras de transferir dinheiro público para o bolso dele. Mas não foi nada disso que Bolsonaro fez: ele escolheu causar prejuízos a outras pessoas mesmo que isso não lhe trouxesse vantagem alguma —ou seja, nos termos de Cipolla, ele foi estúpido.
Em frente ao Alvorada, ele declarou que seu governo providenciaria, “com urgência constitucional”, uma lei federal para proibir a “ideologia de gênero”.
Sem perder tempo repetindo trivialidades, vale a definição de Drauzio Varella: “Ideologia de gênero é um termo inventado por preconceituosos que não aceitam a diversidade do comportamento sexual humano”.
Uma lei contra a suposta “ideologia de gênero” é apenas uma lei para coagir, inibir e punir os que, por razões biológicas ou psíquicas, não são enquadrados pelas categorias sumárias de homem e mulher.
Ou seja, é uma lei para danificar um grupo de pessoas, para comprometer seu direito de viver livremente de acordo com sua natureza.
Para Cipolla, essa é uma estupidez, pois significa causar prejuízo sem ganhar nada em troca.
Eu tendo a pensar que a estupidez não é só uma forma de irracionalidade: ela se explica quase sempre por algum ganho secundário. A estupidez, na minha experiência clínica, tem uma função escusa e importante para o estúpido: ela lhe permite coagir, inibir e punir desejos, fantasias e inspirações que estão nele mesmo, que ele condena, mas não consegue reprimir, e contra os quais, portanto, prefere lutar nos outros.
Atenção: esse tipo de estupidez não requer que o estúpido sofra, no caso, de um conflito interno contra vontades inconfessáveis de viver em mais de um gênero. Para essa estupidez, basta aderir à visão de mundo do machismo médio de botequim. E, claro, prezar o “sucesso” na roda de botequim acima de tudo —acima da verdade, do conhecimento e da decência.
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