No dia 29 de abril, o Supremo Tribunal Federal concluiu o julgamento de medidas cautelares ajuizadas em sete Ações Diretas de Inconstitucionalidade e, por maioria, decidiu suspender os efeitos de dois artigos da MP 927/2020. A suspensão do Artigo 29 dessa MP – que expressamente afastava a natureza ocupacional da contaminação pelo Coronavírus, salvo se ficasse comprovado que a mesma ocorreu por conta da atividade laboral – trouxe consequências de ordem prática.
Diversos veículos de comunicação informaram que a suspensão do artigo ensejava o imediato reconhecimento da contaminação como doença equiparada a acidente de trabalho. Isso sabidamente gera repercussões de natureza previdenciária e trabalhista, a exemplo de percepção de auxílio doença acidentário (Cod. 91), garantia de emprego, obrigação de recolhimento de FGTS no período de afastamento, riscos de condenação em ações indenizatórias e aumento do Fator Acidentário de Prevenção (FAP).
Inicialmente cumpre salientar que ainda não foi divulgada a decisão do referido julgamento, pelo que a presente análise é feita levando em consideração os votos dos ministros em si. O voto que prevaleceu, no particular, decorreu da divergência trazida pelo ministro Alexandre de Moraes, que pode ser resumida da seguinte forma: o artigo 29 da MP 927 não guarda relação com a motivação da Medida Provisória que visa à preservação dos empregos e dos postos de trabalho.
Em outras palavras, a fim de tentar minimizar os danos decorrentes da pandemia, o Governo federal editou a Medida Provisória com o objetivo de reduzir os impactos sobre os empregados e empregadores, com vistas à preservação dos princípios da valorização social do trabalho e da livre iniciativa. No entanto, o Artigo 29, que afastava a natureza ocupacional da doença, não guarda relação com a mencionada finalidade.
Alguns ministros citaram que o referido Art. 29 impunha ao empregado a obrigação de fazer uma prova diabólica, ao estabelecer a obrigatoriedade de provar o nexo de causalidade, ou seja, a relação direta da doença com o trabalho. No entanto, o fundamento do voto divergente foi a falta de relação com a motivação da MP.
Ocorre que na prática, entendemos que a suspensão dos efeitos do Artigo 29 não mudou em nada a disciplina atual, uma vez que a alínea “d”, do §1º do art. 20 da Lei 8213/91 já estabelecia que a doença endêmica não se equipara a doença do trabalho, salvo se comprovado que a mesma é resultante de exposição ou contato direto determinado pela natureza da atividade.
Em outras palavras, o Artigo 29 teve seus efeitos suspensos, porém a alínea d, §1º do art. 20 da Lei 8213/91, que estabelece basicamente a mesma coisa, continua vigente. Ela impõe que, por regra, a doença endêmica – no caso, a covid-19 – não se equipara a doença do trabalho, a qual é conceituada como sendo aquela adquirida ou desencadeada em função de condições em que o trabalho é realizado e com ele se relacione diretamente.
Isso, no entanto, não significa que está afastado o risco de enquadramento da contaminação, como doença de trabalho, caso, pela natureza do trabalho, haja exposição ou contato direto com o vírus. Como dito, a decisão do Supremo não adentrou no mérito da questão, pois suspendeu os efeitos do artigo pelo fato de o mesmo não guardar relação com a razão de ser da medida provisória em si. Dessa forma, ao contrário do que pode parecer, o referido julgamento não muda a realidade já existente em nosso ordenamento jurídico.
Ou seja, mesmo diante do estado de pandemia, a contaminação pelo Coronavírus pode ser equiparada a acidente de trabalho se, pela natureza do trabalho, houver exposição ou contato direto com o vírus.
A questão a ser discutida é: de quem é a obrigação de provar que a natureza do trabalho implicou na exposição e contato direto com o vírus? Para responder a essa pergunta, é necessário analisar as atividades desenvolvidas e, por isso, torna-se relevante tratar dos trabalhadores das denominadas atividades essenciais, elencadas no Decreto 10.282/20 e definidas como sendo aquelas que, se não atendidas, colocam em perigo a sobrevivência, a saúde ou a segurança da população.
Assim, considera-se que em se tratando de trabalhadores ligados a atividades essenciais, ou outras que por sua natureza gere a presunção da exposição e contato direto com o vírus, cabe ao empregador provar a ausência do nexo de causalidade.
Considerando que uma das principais medidas implementadas pelos empregadores, a fim de dar continuidade a atividade empresarial, foi a adoção do home office ou teletrabalho, sendo essa a hipótese podemos afirmar que a despeito da continuidade da prestação dos serviços, foram observadas as regras de isolamento social e não houve exposição ou contato com o Coronavírus por conta do labor.
O mesmo não se pode falar dos profissionais de saúde que trabalhem em estabelecimentos com casos confirmados da doença. Em outras palavras, diante dos termos da alínea d, §1º do art. 20 da Lei 8213/91, entendemos que, a fim de evitar a exigência da prova diabólica referida pelos ministros do STF, a depender da natureza do trabalho, ocorre a inversão do ônus da prova, cabendo ao empregador provar que uma eventual contaminação pelo vírus não decorreu de exposição ou contato direto, a despeito da atividade desempenhada. No entanto, via de regra, a doença endêmica (covid-19) não se equipara a doença do trabalho.
Neste momento, mais do que nunca, o empregador que necessita do labor presencial de seus funcionários deve observar as medidas de segurança, higiene e medicina do trabalho, estabelecendo protocolos que observem todas as normas recomendadas pelo Ministério da Saúde e da OMS. Por exemplo, disponibilizar e exigir o uso máscaras e álcool em gel , higienização das mãos, manter distância mínima nos postos de trabalho, alternar horários de entrada e saída para evitar aglomerações, reforçar medidas de limpeza e não exigir o labor de empregados com qualquer sintoma da doença.
Diante de tudo quanto exposto, entendemos que a decisão do STF que suspendeu a eficácia do art. 29 da MP 927 não altera a alínea d, §1º do art. 20 da Lei 8213/91, que estabelece a regra geral de que a doença endêmica não pode ser caracterizada como doença do trabalho, nem mesmo a exceção que impõe a análise da natureza da atividade e da exposição ou contato com o risco.
Importante frisar, no entanto, que havendo o preenchimento daqueles requisitos, como no casos dos empregados vinculados às atividades declaradas essenciais, cabe ao empregador o ônus da prova de que atendeu todas as medidas de segurança, higiene e medicina do trabalho a fim de evitar o contágio e, via de consequência, o reconhecimento da natureza ocupacional da doença.
*Carolina Miranda, advogada e sócia do Pessoa & Pessoa Advogados Associados
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