Enquanto Harry e Meghan saem de cena no Reino Unido, ex-rei espanhol é acusado de corrupção
[RESUMO] Atitudes controversas de integrantes das famílias reais britânica e espanhola —quebra de regras de conduta na primeira, práticas criminosas na segunda— levaram a crises nos valores morais de ambas as dinastias, o que pode acarretar impasses sobre o papel político que vinha sendo exercido nesses regimes.
Nos tempos mais recentes, as monarquias europeias se conciliaram com a democracia: o monarca veio a simbolizar o Estado, a união nacional, enquanto os partidos disputam o governo. Partidos querem dizer: a sociedade está dividida. Já o monarca significa: estamos unidos.
Neste quadro, duas dinastias europeias se destacam. O curioso é que ambas hoje estão em crise: a britânica e a espanhola. Em que pesem as diferenças entre os Windsor e os Borbón, o casal Harry-Meghan sai de cena ao mesmo tempo que o ex-rei Juan Carlos é acusado de corrupção.
Em 1837, quando subiu ao trono a rainha Vitória, a monarquia inglesa vinha de décadas de escândalos. Naquela época, o Reino Unido poderia ter virado uma república. Mas Vitória e seu marido, Alberto, mudaram tudo.
Formaram uma família exemplar —ao contrário de seus antecessores— e se retraíram da política. Despolitização e moralização obedeceram a uma mesma lógica. A realeza se tornou neutra, em termos partidários.
As divisões ficavam na Câmara dos Comuns, nos partidos. A unidade nacional estava na família, tendo por modelo a real. Diferenças na política, identidade nacional na família.
No entanto, a solução inglesa teve suas ovelhas negras —uma por geração. A primeira foi o filho de Vitória. Sorte que ela reinou mais de 60 anos, e Eduardo 7º nem dez.
Mulherengo, foi sucedido pelo recatado Jorge 5º. Desde o começo do século 20, porém, sempre houve uma rebeldia do inconsciente, um retorno do recalcado: o rei seguinte, Eduardo 8º, gostava de mulheres casadas. Quis se casar com uma delas, Wallis Simpson. Foi um escândalo: teve de abdicar. Tornou-se duque de Windsor.
Passou o resto da vida criando problemas. Indignou-se porque sua esposa não recebeu o título de “alteza real”. De birra, mal deixou o trono, foi festejar o regime nazista. É verdade que o Reino Unido queria apaziguar a Alemanha. E não acredito que o duque fosse nazista, mas era pirracento.
Em 1940 estava na França quando os alemães a invadiram, e demorou a deixar o país. Despertou suspeitas de que aceitaria voltar ao trono, como fantoche alemão, se Hitler tomasse a Inglaterra. O governo inglês mandou-o bem longe, como governador-geral das Bahamas, onde também se portou mal.
Quem viu a série “The Crown” fique sabendo: ela é generosa com ele. Generosa demais.
A ovelha negra seguinte foi a irmã da atual rainha, a princesa Margaret, que se apaixonou por um homem casado. Ele se divorciou, mas Elizabeth 2ª não permitiu que se casassem (Quem está na sucessão do trono precisa da permissão real —ou então sai da linha sucessória; Margaret amava Peter Townsend, mas não quis renunciar a seus privilégios). Terminou casando, também por pirraça, com um homem que não amava nem a amava.
O príncipe de Gales, Charles, talvez seja um duque de Windsor que deu certo. Apaixonou-se por Camila Parker, mas consta que o fato de ela não ser virgem barrou a união. Ela se casou com outro —e ajudou Charles a escolher uma noiva virginal.
O escândalo foi este: quando Diana percebeu que tinha sido manipulada pelos dois, sofreu muito, mas soube virar o jogo. Charles talvez nunca reine. Sua imagem ficou manchada pelo que fez a Diana. A morte trágica dela a converteu num ícone.
Em 1992, quando três filhos da rainha Elizabeth se separaram, ela disse que havia sido um “annus horribilis”. O modelo vitoriano se quebrou.
Em troca dos privilégios (muitíssimo dinheiro), a família tinha que ser exemplar. Quando ficou claro que cada filho e nora queria levar a vida do seu jeito, perdeu-se a justificativa vitoriana para os privilégios. Foi difícil acalmar os ânimos.
Entretanto, as coisas se equilibraram —paradoxalmente, graças a Diana (no filme “A Rainha”, de Stephen Frears, o premier Tony Blair usa bem sua imagem, como “princesa do povo”). Seus filhos se tornaram populares. Parecem ser gente normal, com coração.
O mais velho, William, se casou com uma moça adequada para conciliar tradição e modernidade, Kate Middleton. Mas a complicação veio quando o segundo filho, Harry, se casou com Meghan Markle, atriz norte-americana, com vida própria.
Por que Meghan aceitaria educar o filho, e viver ela mesma, segundo um protocolo rígido, desumano? Não sei se foi por influência dela, mas o casal decidiu ser gente.
Direito deles, não fosse o fato de receberem muito dinheiro para representar os papéis de príncipe e princesa. Não é casual que a discussão sobre a renúncia deles ao título de “alteza real” tenha tratado tanto do dinheiro.
Os dois, porém, são ricos, não precisam viver no inferno da etiqueta. William e Kate se dão bem no papel tradicional da realeza, mas não sabemos como será, no futuro, com seus filhos.
Na Espanha, a situação é diferente, mas tem algo parecido. Juan Carlos foi um grande rei. Assumiu o trono em 1975, incumbido pelo ditador Francisco Franco de manter o fascismo, mas, em meses, liquidou a herança maldita.
Dialogou, abriu-se para a democracia e a Europa. Quando os fascistas tentaram um golpe de Estado, abortou-o. Sem ele, a Espanha teria vivido, talvez não uma nova guerra civil, mas conflitos de muita intensidade.
Foram décadas de prestígio. E aí vieram as denúncias. Em 2012, foi surpreendido num safári com a amante. Então, o rei não era modelo de vida familiar? E no safari ele se machucou seriamente —a rainha traída, claro, não foi lhe fazer companhia— e circulou o mundo uma foto dele ao lado do elefante que matou.
O World Wildlife Fund, para não o tirar de sua presidência de honra na Espanha, simplesmente suprimiu esse cargo.
E logo antes disso seu genro, um esportista de sucesso, Iñaki Urdangarín, foi acusado de corrupção (atualmente cumpre pena na cadeia). Finalmente, Juan Carlos abdicou.
Quem talvez mais tenha sofrido com isso seja seu filho, o atual rei, Filipe 6º. Teve a coragem de casar-se com uma jornalista divorciada, a hoje rainha Leticia. Mas cassou o título de duque do cunhado (e da irmã, o de duquesa).
Dá hoje para tirar fotos da família inteira? Difícil. Agora se soube que o pai, ex-rei, recebeu propinas da Arábia Saudita. Denúncias que se somam a outras, ligadas a países árabes, armamentos e petróleo.
Antes mesmo de apurar as últimas denúncias, o rei Filipe cassou a mesada que os cofres públicos pagavam a seu próprio pai, dando implicitamente razão às acusações.
Harry e Meghan, com o pequeno Archie, podem partir para a vida privada e ser felizes. Filipe 6º, rei, não tem como. E, se podem ter ficado mágoas entre Harry e a rainha, sua avó, imagine-se a tensão entre Juan Carlos e sua rainha, publicamente humilhada pelo adultério, ou entre o atual rei e sua irmã, mulher de um presidiário, ou entre ele e o pai que privou da mesada.
Nada disso é mera fofoca. É política. Nos dois países, a causa republicana é fraca. Mesmo assim, o brexit deixa no horizonte a possibilidade de secessão da Escócia. Se tudo der errado —piorado pelo coronavírus— o reino pode voltar a ser desunido. E a situação espanhola é grave. Justamente por causa da transição pacífica para a democracia, a Espanha não desmantelou o franquismo. Ele perdeu umas eleições, ganhou outras. Da última vez que esteve no poder, a direita tratou a patadas a reivindicação de muitos catalães pela independência.
Pessoalmente, considero difícil a separação da Catalunha em condições normais. Precisaria pedir, como novo país, admissão na União Europeia —e basta um membro dizer não, no caso a Espanha, para ela ficar fora, o que seria um desastre para os catalães. Mas, até por isso, não era preciso levar aos tribunais ou ao cárcere os líderes independentistas. Uma péssima prática franquista, que favoreceu o crescimento de um partido fascista, o Vox.
O que põe em questão a façanha de Juan Carlos, a passagem tranquila para a democracia: Portugal não fez melhor, ao limpar o aparelho de Estado dos veteranos fascistas? Será que faltou, à Espanha, uma revolução, como a dos Cravos?
Dizem que Franco, perto de morrer, pediu a Juan Carlos que não deixasse o país dissolver-se. Seu medo maior não seria a volta da democracia, nem a da esquerda, mas a desagregação de um país que ele centralizou à força, a ponto de restringir o uso de línguas nacionais como o catalão, o basco, o galego. Há risco de se desfazer a unidade espanhola?
Curiosamente, a União Europeia enfraqueceu os Estados nacionais, mas a última coisa que a União quer é que eles se dissolvam. Isso geraria um efeito dominó, transformando seus 27 países em cinquenta ou cem. O pesadelo de Franco talvez não se realize. Hoje o problema da Espanha, uma democracia admirável, é o fortalecimento do fascismo. Podemos até condenar o separatismo catalão (como faz o jornal El País), mas reprimi-lo, pior, voltar a ter presos políticos em pleno século 21 é uma ameaça à democracia.
Resumindo, mesmo que um dia a Escócia se separe do Reino Unido, a dinastia britânica vai bem. William e Kate serão um charmoso casal real. A monarquia é fonte de receitas turísticas e isso, embora seja bem menos do que a rainha Vitória gostaria, pode dar-lhe uma sobrevida —no pior dos casos, como soberanos de dois reinos que dividiriam a mesma ilha (como foi até 1707). Já na Espanha, a situação está sombria. Os catalães identificam o rei ao centralismo castelhano.
Além disso, embora as duas famílias reais sejam riquíssimas, só a espanhola é acusada de corrupção. Pior, ainda, foi o modo como despencou a imagem de Juan Carlos. Se ninguém esperasse nada dele, não teria havido decepção. Mas, como ele teve um papel notável na democratização, receber propinas, matar elefantes e trair a mulher corroeram seu papel de herói.
O Reino Unido parece estar modernizando a imagem da família real, com um casal jovem e que se ama, mas o papel da realeza é diferente nos dois países. No Reino Unido, significa que a família está acima dos partidos, que a moral é superior à política —o jeito britânico de dizer que o que nos une é mais forte do que o que nos separa.
Já na Espanha, o papel da realeza é difícil de definir. Serviu de caução à democracia, e naquele tempo valeu mais do que a realeza britânica. Mas, com as forças centrífugas crescendo, e o valor moral dos Borbón decaindo, perdeu valor.
Em nenhum dos países, é curioso, a monarquia se enfraquece em favor de uma causa republicana. Uma família real desmoralizada é um ônus elevado, especialmente quando ela custa muito caro.
A realeza funciona, hoje, quando se coloca como um traço de união moral acima das divergências políticas. É a invenção inglesa da rainha Vitória, mesmo que sem seu moralismo hoje obsoleto. O problema na Espanha seria como reconstituir esse valor moral. Porque o risco de um Estado plurinacional é virar uma Bélgica, que continua existindo, mas sem sentimento nacional, apenas como justaposição de povos indiferentes e mesmo hostis uns aos outros.
E basta olhar hoje para nós mesmos, brasileiros, para ver como é difícil um país ser íntegro, uno, altivo, quando não há um valor moral comum a sustentá-lo.
O título deste texto faz referência à canção “Shame and Scandal in the Family”, gravada em 1964 pelo cantor americano Shawn Elliott. “O Escândalo”, versão brasileira da música, foi gravada pela banda Renato e Seus Blue Caps em 1965 e, na década de 1980, por Sérgio Mallandro.
Renato Janine Ribeiro, professor titular aposentado de ética e filosofia política da USP e professor visitante na Unifesp (Universidade Federal de São Paulo), foi ministro da Educação em 2015, durante o governo Dilma Rousseff (PT).
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