Seu descaso pelo jornalismo não é de hoje; não se interessa pela área, acha que tem custos altos e é fonte de problemas
Na crônica futura sobre os idos de maio de 2020, um parágrafo deverá ser dedicado ao dono do canal de televisão que ligou para o departamento de jornalismo num sábado à tarde e mandou cancelar a edição do principal telejornal da casa naquela noite.
Há muitas versões sobre o que aconteceu no último dia 23, mas é absolutamente certo que Silvio Santos determinou pessoalmente a substituição do SBT Brasil por uma reprise do “Triturando”, um programa de fofocas muito mal feito.
Também é incontestável que a decisão está relacionada a uma divergência sobre a exibição do conteúdo da reunião ministerial do governo Bolsonaro, autorizada pelo STF na véspera.
Ouvi muitos relatos que a reportagem do SBT Brasil exibida na noite de 22 de maio, resumindo o conteúdo da reunião, não teve a forma que o governo esperava de um aliado. Em cinco minutos, respeitando critérios jornalísticos elementares, o telejornal destacou os pontos mais chocantes.
No domingo, sem qualquer explicação, o SBT exibiu duas vezes um vídeo de sete minutos com um compilado que incluía outras frases ditas pelo presidente durante a reunião. Sem edição jornalística, contexto ou mesmo legendas, o clipe coincidentemente trazia muitos trechos também vistos num vídeo exibido pelo próprio Bolsonaro em suas redes sociais.
Isolado em casa desde março, para se proteger da pandemia de coronavírus, Silvio Santos vinha tomado medidas pontuais sobre aspectos pouco relevantes da programação do SBT. Mandou trocar apresentadores deste mesmo “Triturando” e fez mudanças no horário de um programa de luta livre, entre outras medidas.
Há quem acredite que o dono do SBT, aos 89 anos, não se deu conta da gravidade da decisão de cancelar, pela primeira vez na história, a exibição de um telejornal.
Tenho dificuldades em aceitar esta versão da história.
O descaso de Silvio Santos pelo jornalismo não é de hoje. Não se interessa pela área, acha que tem custos altos e é fonte de problemas. A lista de anedotas e aberrações é longa; uma das mais recentes foi a contratação de um garoto de 18 anos para apresentar um telejornal matinal.
O dono do SBT gosta de argumentar que, por ser uma concessão pública, o seu canal não deve questionar o governo, qualquer governo.
Sem esquecer que Silvio bajulou todos os presidentes do país, desde o general Médici.
Em abril, ao negar que tenha sugerido ao presidente Bolsonaro o nome de um médico para o lugar de Luiz Henrique Mandetta no Ministério da Saúde, Silvio disse: “A minha concessão de televisão pertence ao governo federal e eu jamais me colocaria contra qualquer decisão do meu ‘patrão’, que é o dono da minha concessão. Nunca acreditei que um empregado ficasse contra o dono, ou ele aceita a opinião do chefe, ou então arranja outro emprego”.
Há uma clara confusão nesse raciocínio de Silvio Santos. Os deveres e obrigações constitucionais de um concessionário de televisão são para com o Estado e não com o governo da vez. O “patrão” de qualquer dono de canal televisão aberta é o que está escrito na lei, não o ocupante do Palácio do Planalto.
A propósito, no sábado em que cancelou o seu telejornal, o SBT não cumpriu a exigência legal de dedicar 5% do tempo no ar a serviços noticiosos —a menos que o “Triturando” seja enquadrado como tal.
Num momento tão delicado quanto este, com ameaças e ofensas quase diárias ao trabalho jornalístico, Silvio Santos deu uma triste contribuição com o seu gesto.
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