quinta-feira, 21 de maio de 2020

Os desafios de Nova York além da pandemia, Lucia Guimarães, FSP

A voz de Frank Sinatra cantando "New York, New York" pode ser ouvida de uma janela na rua em que estou hospedada, pontualmente às 19h, quando a cidade presta homenagem aos profissionais de saúde, aplaudindo e batendo panelas.
A metrópole da letra que diz “eu quero acordar numa cidade que não dorme”, pelo menos nesta vizinhança, está cochilando há quase três meses.
Quando o sol se põe, dá para notar, nas fachadas escuras dos edifícios, que esta área afluente de Manhattan foi esvaziada. Os moradores se refugiaram da pandemia em casas de campo e de praia.
Moradores deitam na grama do Domino Park, no Brooklyn (Nova York); círculos brancos foram riscados no chão para demarcar o espaço de distanciamento social
Moradores deitam na grama do Domino Park, no Brooklyn (Nova York); círculos brancos foram riscados no chão para demarcar o espaço de distanciamento social - Johannes Eisele - 17.mai.20/AFP
O verão começa em junho, mas o êxodo da cidade tradicionalmente começaria com o Memorial Day, o feriado que celebra os mortos em guerras, na segunda-feira (25).
Hoje, o dilema dos afortunados que partiram é como planejar o retorno e o que significa retomar a rotina na cidade mais populosa e mais densa do país, onde já morreram 20.376 pessoas, 22% do total de mortos nos EUA.
quarentena de Nova York foi estendida até pelo menos 13 de junho. Novos casos de contaminação pela Covid-19 continuam a cair, e a cidade está testando uma média de 20 mil pessoas por dia.
Os exames dão uma medida do peso da desigualdade na pandemia. Enquanto 20% dos moradores de Manhattan apresentaram anticorpos para o novo coronavírus, no Bronx, onde vivem mais negros e hispânicos, 34% da população tem anticorpos.
A incerteza sobre o futuro próximo vai além da reabertura de escolas e universidades. Duas das maiores, Columbia e New York University, planejam reabrir no segundo semestre e, por enquanto, a prefeitura diz que o plano é reabrir todas as escolas públicas no começo do ano letivo em setembro.
Por ser tão densa, Nova York depende excepcionalmente do transporte de massa. Antes da pandemia, a ilha de Manhattan tinha 1,4 milhão de residentes, mas a população circulando nos dias úteis subia para 3,4 milhões. A tensão diária no sistema de metrô é evidente. Houve vários casos de excesso de força quando a polícia deteve passageiros por não usar máscaras.
A outra fonte de tensão é a greve do aluguel convocada desde 1º de maio. A adesão parece mais baixa do que esperavam, a julgar pelas 12 mil assinaturas recolhidas.
Nenhuma cidade tem a taxa de inquilinos de Nova York, onde eles são dois terços da população (5,4 milhões). O governo estendeu a suspensão de despejos até junho.
Ao contrário da recuperação pós-crash de 2008, o retorno de Nova York em 2020 vai refletir mudanças impostas pelo vírus.
A cidade do metro quadrado residencial e comercial mais caro do continente pode enfrentar mais do que uma fuga inicial de residentes inquilinos. O pequeno comércio ocupa dois terços dos imóveis comerciais aqui e não há pacote de ajuda federal que garanta a reabertura de todos os 26 mil restaurantes.
Empresas com escritórios em Manhattan vão emergir da pandemia avaliando melhor a experiência de manter funcionários trabalhando de casa. E os funcionários vão reconsiderar morar num caro e apertado quarto e sala, antes tolerável pelas horas passadas no trabalho, em bares e teatros cuja reabertura gradual continua imprevisível. O imposto predial representa metade da receita fiscal de Nova York.
Dan Doctoroff, o ex-vice-prefeito que ajudou a cidade a se reerguer do 11 de Setembro, tem alertado: Nova York vai voltar se líderes locais promoverem políticas que mantenham a confiança na sua densidade.
Lúcia Guimarães
É jornalista e vive em Nova York desde 1985. Foi correspondente da TV Globo, da TV Cultura e do canal GNT, além de colunista dos jornais O Estado de S. Paulo e O Globo.

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