Momentos de um templo gótico feito de tempo e arte, de povo e fogo
De 1300 a 1318. Jean Ravy e seu sobrinho Jean Le Bouteiller esculpem os painéis de madeira em volta do coro de Notre-Dame. Contra um fundo dourado de glória, contam em alto-relevo a vida de Jesus —da Anunciação à Ascensão. O Massacre dos Inocentes é a passagem proeminente.
As figuras, pueris e chapadas, vão num átimo da anedota ao drama. De vestido azul-marinho cravejado de estrelas, Maria se gaba da gravidez. Uma mãe enfia o dedo no olho de um miliciano, que ataca seu nenê com o sabre.
Século 14. O tio e o sobrinho esculpem a si mesmos num canto dos painéis: são meros figurantes. Sua obra multicolorida é das mais queridas de Notre-Dame. Na Semana Santa, servia de modelo para encenações da Paixão ali perto.
Janeiro de 1793. Luís 16 é guilhotinado, as missas são proibidas e a turba saqueia o templo. Como altezas não podiam ter cabeça, degolam os Reis de Judá, as 28 estátuas que, acima das três portas de entrada, atravessam a fachada de ponta a ponta.
Maio de 1804. Bonaparte é sagrado Napoleão 1º em Notre-Dame. Impede que Pio 7º o coroe porque não é rei por direito divino, mas a espada do Império. Põe ele mesmo a coroa na cabeça e o papa apenas o benze. Teria dito a José, seu irmão: “Se nosso pai nos visse...”.
Como as cabeças dos Reis de Judá sumiram, novos crânios foram fixados nas estátuas durante a Restauração napoleônica. Em 1977, 21 das cabeças originais foram descobertas, enterradas no pátio de uma mansão parisiense. Estão no Museu de Cluny, ao lado da Sorbonne.
Março de 1831. Victor Hugo publica “Notre-Dame de Paris”. Na terceira parte do romance, escreve: “Cada pedra do venerável monumento é uma página não somente da história do país, mas também da história da ciência e da arte”.
A catedral de Paris vira marco nacional, síntese de tecnologia e estilo, e não mais eflúvio da divindade. O romance acentua o coletivo —que abarca da bela Esmeralda ao grotesco Quasimodo— cujo ápice é a massa andrajosa do Pátio dos Milagres: os miseráveis que aspiram aos píncaros góticos.
Outubro de 1895. Notre-Dame é o lugar predileto de Freud durante sua estadia em Paris, para estudar histeria e hipnose com Charcot. “Nunca vi nada tão comoventemente sério e sombrio”, escreve.
Fevereiro de 1905. Proust publica sua tradução de “A Bíblia de Amiens”, de John Ruskin. Com um prefácio copioso e infindáveis notas de rodapé, consolida sua concepção das catedrais: Bíblias de pedra, arte coletiva, espaços estéticos onde o tempo se condensa e é apreendido.
Mas vem a considerar “À Procura do Tempo Perdido”, seu romance-catedral, como arte subjetiva, e não a expressão, ao longo dos séculos, da confraria infinita de artesãos, de curas, de esnobes e de crentes —a expressão de um tempo e de um povo.
Agosto de 1944. Para comemorar a libertação de Paris na véspera, De Gaulle vai de carro conversível a Notre-Dame. É recebido a tiros por colaboracionistas. Entra na igreja e assiste à missa.
Julho de 1989. No bicentenário da Revolução, André Conti, com sete anos, vê a Morte dos Inocentes em Notre-Dame. Pergunta se, como os bebês que Herodes mandou matar, também ele é primogênito.
Outubro de 2002. Lina Conti, com três anos, visita o templo gótico e, no colo, percorre os painéis em torno do coro. Sentada num banco da igreja, conta depois que o único bebê que conseguiu fugir, a cavalo, foi Jesus.
Fevereiro de 2003. Num fim de tarde frio em Notre-Dame, Gérard Depardieu declama trechos das “Confissões”, de Santo Agostinho. A atriz Aurore Clément, a primeira-dama Bernadette Chirac e Guillaume, filho do ator, prestam atenção ao que ele diz.
E Depardieu diz: “Se nada passasse, não haveria tempo passado; se nada sobreviesse, não haveria tempo futuro; se nada fosse, não haveria tempo presente”. A palavra “tempo” dá voltas e mais voltas pelo vazio imenso. O objetivo do tempo é deixar de ser. O da catedral, também.
Janeiro passado. Em viagem profissional, André visita Lina em Paris. Almoçam no Train Bleu, vão à mostra de Sergio Leone na Cinemateca e passeiam por Notre-Dame. Ficam um tempão vendo a Vida de Jesus.
Segunda-feira. Do ônibus, Lina percebe as chamas e manda a mensagem antes que a notícia tome o mundo: “Notre-Dame está pegando fogo!”. O post de André chega pouco depois: “Sensação de fim do mundo”.
Quarta-feira. Laurent Prades, administrador do patrimônio de Notre-Dame, um dos primeiros a entrar na igreja depois do incêndio, anuncia: “A parede do coro está salva”.
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