Naief Haddad
SÃO PAULO
A campanha que opôs Jair Bolsonaro (PSL) a Fernando Haddad (PT) no segundo turno da disputa para a Presidência da República em 2018 não acabou.
Devido ao vale-tudo da internet, com a profusão de robôs e fake news, e ao discurso antissistema do presidente eleito, que inclui a virulência constante contra a esquerda, entre outros fatores, o embate eleitoral se tornou permanente. Não se limita a ciclos, como estávamos acostumados.
Desenvolvida de formas diferentes, essa ideia aparece nos ensaios do advogado especialista em tecnologia e colunista da Folha Ronaldo Lemos e do professor de direito constitucional da USP Conrado Hübner Mendes.
Os textos de ambos integram o recém-lançado “Democracia em Risco? 22 Ensaios sobre o Brasil Hoje”, em que 24 autores discutem as motivações das recentes reviravoltas da política brasileira e refletem sobre as perspectivas do governo Bolsonaro.
“Era nosso desejo intervir no debate com rapidez”, escrevem os editores na apresentação da obra. Assim, os textos ficam a meio caminho entre densidade que caracteriza a produção acadêmica e a urgência jornalística.
Os ensaístas são intelectuais habituados ao debate público, entre historiadores, sociólogos, cientistas políticos, advogados e economistas. Surgem no livro diferentes visões sobre o que representa o êxito bolsonarista.
“A eleição geral de 2018 foi disruptiva”, escreve o sociólogo Sérgio Abranches. “Encerrou o ciclo político que organizou o presidencialismo nos últimos 25 anos e acelerou o processo de realinhamento partidário que já estava em curso.”
Socióloga e colunista da Folha, Angela Alonso adota uma linha próxima, interpretando o processo eleitoral de 2018 como uma ruptura.
“Com camisetas amarelas, a eleição de Bolsonaro encerra a Nova República, que com elas começou”, diz. Ela se refere ao amarelo que dominava as manifestações das Diretas Já, em 1983 e 1984.
Em contraste, o cientista político e colunista da Folha André Singer e o sociólogo Gustavo Venturi não aderem à tese de um desvio mais profundo em consolidação.
Para eles, a eleição indica, por ora, um deslocamento temporário dos setores médios para a direita. Esse novo arranjo pode se tornar duradouro se a gestão do PSL for bem-sucedida em áreas como economia e segurança.
Para os historiadores que participam do livro, um ponto-chave é observar o passado para entender a chegada à Presidência de “um candidato explicitamente comprometido com um ideário político de extrema direita, manejando uma agenda de valores ultraconservadora”, nas palavras de Heloisa Starling.
Ela e seus colegas historiadores Boris Fausto e Daniel Aarão Reis acreditam que parte expressiva da sociedade brasileira, incluindo os militares, jamais se dispôs a refletir sobre a ditadura instalada com o golpe de 1964. Ao evitar a revisão desse período histórico, o país cria as condições para a ascensão de políticos com o perfil de Bolsonaro.
“Discutir de forma aberta o longo período 1964-84 permitiria aos militares ter um comportamento mais arejado e afirmativo na sustentação da democracia”, escreve Boris Fausto.
Irmão de Boris, o filósofo Ruy Fausto também está presente no livro. Em linhas gerais, ele dissocia o fascismo do bolsonarismo, um movimento com “características particulares”.
Ruy arrisca um neologismo, “democratura”, para definir a “onda autocrática que assola o mundo moderno”. Além do Brasil, diz ele, a maré atinge países como EUA, Itália, Hungria e Filipinas.
A hegemonia da economia ultraliberal, a adesão do poder público aos valores cristãos (católicos ou protestantes) e o temor da violência urbana pela população estão na base da “democratura”.
Páginas adiante, aparece outro neologismo, “populisprudência”, cunhado por Conrado Hübner Mendes. É a versão judicial do populismo, uma das marcas que desabonam o Supremo Tribunal Federal (STF).
Para o professor, só “um STF mais atento à Constituição e à preservação de sua combalida autoridade” será capaz de enfrentar o jogo duro que pode vir pela frente.
DEMOCRACIA EM RISCO?
Autores: Angela de Castro Gomes, Celso Rocha de Barros, José Arthur Giannotti, João Moreira Salles, Matias Spektor e outros.
Editora: Companhia das Letras.
328 págs.
R$ 55 (versão digital: R$ 30).
Nenhum comentário:
Postar um comentário